segunda-feira, 2 de junho de 2014
Escafandrista nº2
"Eu sabia que você vinha para partir,
deixando-me a tristeza da lembrança e nada mais."
(Delmira Agustini)
Lamento essas relações reduzidas a um número mínimo de caracteres, que espremem o sujeito nas mais toscas abreviações e figurinhas... Me faltou o adjetivo para as figurinhas.
Porque eu gosto mesmo é de me esticaaaaaaaar em linhas e mais linhas, nem me importando se lidas ou não.
Herdei de minha Avó materna a vocação. ADORO CARTAS!!!
Meu gosto pelas danadas já rendeu a este blog, entre outras correspondências, duas temporadas da série Lettre D'Amour, "invasão" à intimidade de Charlotte, Marion, Isabelle, Catherine e Hélène, minhas adoráveis mulheres. Também escrevo cartas aos poetas de minha estima, vivos ou mortos.
Ontem à noite mergulhei outra vez nos poemas da uruguaia Delmira Agustini. Mal pude dormir. Despertei inquieta para lhe escrever. Mas queria lhe escrever lá dos meus 28 anos, a idade em que ela foi assassinada. Porque eu me lembro bem o que eu vivia e as referências já alcançadas naquela época, de modo que é dali que me parece ainda mais duro o seu desaparecimento precoce. Ah, Delmira! Desta vez não consegui uma linha, minha querida. Me perturba uma inspiração que não acha meio. Porém, obcecada por ocupar este meu empoeirado espaço virtual com uma carta que dissesse a ti, ou de ti, tomei a liberdade de vasculhar a tua correspondência íntima e deixar que leiam de tua própria escrita os tormentos de mal realizada paixão por aquele argentino que eu não conheço, e trato de imaginá-lo pelo que tu sofres e revelas. Ao leitor que se interesse, é pôr-se no lugar de Manuel Ugarte e receber:
“Sua carta me fez quase mais mal do que seu silêncio. Eu acreditei que
você me interpretasse melhor. Estou certa de não haver dito em meu arabesco
literário uma coisa apenas que não fosse a verdade, e que não fosse, isso sim,
mais pálida que a verdade. E o mais estranho desse caso é que protesto contra
suas palavras, e, no fundo, talvez, dou-lhe razão. É certo, eu não fui
absolutamente sincera com você. Mas pense você que existem sinceridades
difíceis. Esse ligeiríssimo véu artístico era quase necessário... Pense você que eu
devo adivinhar e dizer. Pense você que tudo o que lhe disse e digo poderia se
condensar em duas palavras. Em duas palavras que podem ser as mais doces, as
mais simples, ou as mais difíceis e dolorosas... Pense você que essas duas
palavras que eu pude em consciência lhe dizer no outro dia em que lhe conheci,
tiveram que se afogar em meus lábios, já que não em minha alma. Para ser
absolutamente sincera eu precisava dizê-las; eu precisava dizer que você
atormentou minha noite de bodas e minha absurda lua de mel... O que parecia
uma novela humorística, converteu-se em tragédia. O que eu sofri aquela noite,
nunca poderei dizer. Entrei na sala como um sepulcro sem qualquer consolo a
não ser pensar que o veria. Enquanto me vestiam, perguntei não sei quantas vezes
se você havia chegado. Poderia lhe contar todos os meus gestos daquela noite... O
único olhar consciente que tive, o único cumprimento inoportuno que iniciei,
foram para você. Tive um relâmpago de felicidade. Pareceu-me um momento que
você me olhava e me compreendia. Que seu espírito estava bem perto do meu em
meio àquela gente incômoda. Depois, entre beijos e cumprimentos, a única coisa
que esperava era sua mão. A única coisa que desejava era lhe ter próximo um momento. O momento do retrato... E depois, sofrer até que me despedi de você. E
depois sofrer mais, sofrer o indizível...
Você, sem saber, sacudiu minha vida. Eu pude lhe dizer que tudo isso era
em mim algo novo, terrível e delicioso. Eu não esperava nada, eu não podia
esperar nada que não fosse amargo deste sentimento; e a voluptuosidade mais
forte de minha vida foi submergir-me nele. Eu sabia que você vinha para partir,
deixando-me a tristeza da lembrança e nada mais. E eu preferia isso, e prefiro o
sonho do que pôde ser a todas as realidades em que você não vibre. Eu precisava
lhe dizer tudo isso, e mais, para ser absolutamente sincera. Mas, entre outras
coisas, tive medo de me descobrir muito no fundo, uma dessas pobres almas
débeis inteiramente rendidas ao amor. Imagine você essa miséria frente ao seu
sorriso um pouco irônico de poderoso... E eu, soube sorrir tão ironicamente como
você...
Já está dito. Se depois disso tudo você voltar a acusar-me de enganadora e
sutil, eu o acusarei simplesmente de mau intérprete sentimental. Nunca o acusaria
de nada pior. Nem esperaria que a brisa de primavera me trouxesse perfumes de
lá para lhe escrever sem saber o porquê.
E conste que me sinto intimamente ferida.”
(Delmira Agustini)
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Bons dias, Ceronha,
ResponderExcluiressa carta de Delmira é uma das mais deliciosas do belo epistolário dela.
Publiquei em SP recentemente a tradução de O Rosário de Eros, da Delmira, e agora faço um blog para homenagear os cem anos de sua morte, que estão para se completar.
Dê uma olhadela em:
www.centenariodelmiraagustini.blogspot.com
O penúltimo post, inclusive, é ilustrado pela foto deste terrível e humorístico casamento da Delmira, que ela cita na carta que você traduziu.
Parabéns pela tradução e pelo blog,
Lucas
Obrigada pela visita, Lucas. Já fui lá conhecer seu blog em homenagem a esta nossa querida. E foi um prazer. Um abraço.
ResponderExcluirAh, e a tradução não é minha, embora eu goste bastane do espanhol. Pesquei de um artigo do Gleiton Lentz, lá de Florianópolis. Como faço pra ler a tua de O Rosário de Eros?
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