sábado, 31 de maio de 2014

ABISMO



O buraco se abre e a gente vai despencando entre assombrada e ao mesmo tempo agradecida. Confuso assim.Toda vez que acontece(e não foram muitas) é como se fosse a primeira, porque algo de importante se ha cambiado e tudo se renova. O impacto, a taquicardia, a falta de ar, uma vontade repentina de chorar. Chorar de alegria, tristeza e tudo quanto é sentimento junto e muito mais. Chorar de HUMANIDADE. Eu queria viver para ter tempo de alguém me contar que se sentiu assim diante de uma obra minha. E não é por vaidade, juro pelo meu Pai, mas para morrer em paz. Porque no instante raro em se dá o arrebatamento, o sentido que se persegue fica desimportante. E que alívio! Proporcionar a outro seria o mais justo agradecimento.
Eros tinha ido com a professora Paula (a minha preferida), visitar o ateliê do artista plástico cusqueño Edilberto Mérida. Conversou com sua viúva e filha, que herdou, para a nossa felicidade, o talento extraordinário do Pai. Como é comum acontecer, Maria Antonieta Mérida antes alcançou o reconhecimento longe de sua pátria, o Peru, e naqueles dias estava acontecendo a sua primeira exposição em Cusco. Barros Dorados - el legado Mérida, em cartaz no Museo de Arte Contemporáneo daquela cidade.
Terminada a visita, ele me encontrou na escola e me arrastou até o referido museu. Na entrada da sala que abrigava a sua exposição, estava já Maria Antonieta que era toda disponibilidade. Prazer em conhecê-la e à sua obra.
Alguns passos no salão, foi quando me deparei com Protesto de una Madre Campesina, se não me falham a memória e o espanhol. O chão se abriu. Minha narrativa não poderá traduzir a sensação e nem vou me ocupar da técnica. Esculpida, uma mulher de pés e mãos enormes, desproporcionais, na qual se identifica inequívoca influência do Mérida Pai, numa clara referência às desumanas condições de duríssimo trabalho no campo. Seu rosto transfigurado pela dor, a fome e a revolta. Sua garganta à vista, seus dentes rasgando a alma de quem olhe. Em vez do estômago, um buraco constrangedor que a blusa aberta nos convida a doer. Com um dos braços ela segura um filho morto. O outro braço está erguido, o punho cerrado e longe de se reduzir ao clichê. Agarrada ao seu pescoço uma criança pouco maior que o bebê morto, despojada de sua inocência,  repete com toda propriedade o gesto da mãe. Ela me contou que Edilberto Mérida estava bastante enfermo já no tempo em que ela esculpia esta Madre. E que ela levava o trabalho de tempos em tempos ao seu leito para ele acompanhasse a evolução. Ele teve tempo e a alegria de vê-la pronta e isto tem imenso valor para Antonieta.
Por esta e outras visões e experiências que gentil e afetuosamente nos ofereceram o povo cusqueño e toda a gente do Vale Sagrado, minha bagagem de volta tinha o peso da crise. Crise do desejo, crise da imaginação. Após o impacto, esta mudez prenhe do indecifrável. Impôs-se um "vazio", abismo criativo que ainda agora me parece intransponível, mas, tendo vivido um bocado, sei que qualquer hora dessas me movo.
Não tenho como mostrar aqui a obra citada. No entanto, o tema me faz querer partilhar outra imagem, mais feliz, e que igualmente me comovia. Infinidade de mães cargando sus hijos em suas lindas llirllas* coloridas, tecidas à mão, estampadas com desenhos de inspiração inca. Elas se multiplicavam por San BlazPlaza de Armas, Mercado San Pedro e todas aquelas calles angostas y empinadas. Poderia postar aqui, se eu não tivesse tanto pudor em fotografar as pessoas. Pudor reforçado pelo Mario que dizia duro e coberto de razão:

- Nossos ancestrais construíram tudo isso e agora vejam como está a minha gente. Humilhada, com suas llamas e suas mãos estendidas se oferecendo ao estrangeiro para "sacar una foto".

Não que fosse sempre assim, mas de qualquer modo eu não me sentia bem em fotografá-las. Me bastava vê-las. Porque ali as pessoas, especialmente as crianças, são lindas. Morro de saudade.

Ceronha Pontes

*Llirlla: Nome em quecha, a lígua dos incas, para designar manta. Aquelas mantas coloridas que se usam amarradas ao corpo de modo que possam carregar de tudo nelas, inclusive as crianças. E parece bastante confortável.

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