domingo, 15 de junho de 2014

Como Água para Chocolate - receitas em verso e prosa



CAPÍTULO II

Sagrado Coração da Terra


Cusco, ainda. Vínhamos de uma visita ao luthier Toríbio, acompanhando a evolução da guitarra de Eros, cuja alma, como ele gosta de dizer, é de jacarandá. Troncos, raspas e muito pó de madeira pelo chão. Instrumentos esboçados, outros a meio caminho andado. A obra em processo. Como isso me estimula! Adoro oficinas.
Os instrumentos acabados disputando espaço na vitrine. Charangos, requintos, violinos e até uma harpa lindíssima em exposição.  E ainda merecer observar, conversar, conhecer a família do artesão. Maria (a esposa), e os três filhos: Claudia(violinista), Lisbet Ingrid e Juan Gustavo. O lugar e aquela família, tudo de uma simplicidade invejável. Nascidas de Mãe gentil e Pai tímido que passa seus longos dias esculpindo instrumentos musicais, as crianças esbanjavam saúde e contentamento. Claudia chegou a me ensinar algumas palavras em quechua. Inti e chaska, foram as que fixei na conversa de dias antes. Sol e estrela.
A gente saía desses encontros cheios de fé na vida e nas pessoas. Abertos a descobrir o outro e a dar de nós.


E foi com esta disponibilidade que topamos com o Maximiliano. Certo que não foi exatamente um acaso. Caminhando sem compromisso de chegar a lugar nenhum, decidimos comprar pão integral numa minúscula, mas muy especial panederia, onde um moço muito bem educado nos atendera outro dia. O moço que, soubemos agora, era o administrador, não estava. Quem nos recebeu foi o Maximiliano, o padeiro. Um chileno sem idade, com cara de dezenove, que eu acho que vai chegar aos cem do mesmo e feliz jeito. Elegeu Cusco para viver e cumprir sua missão. Sim, ele nos contou entre honestíssimas gargalhadas, que meditava em alguma praia do mundo e que eu não me lembro qual, quando recebeu a canalização. Um sinal divino ordenando-o a fazer pães. E ele não fez a egípcia. Tratou de tomar conhecimento do ofício que lhe colocou o Grande Mistério. Trabalhou com um padeiro muito respeitado no Chile e depois de aprender o que ele lhe queria ensinar, e assegurar-se de que existiam segredos que ele não lhe revelaria, e que tampouco tomaria cuidados que só alguém que recebesse "o chamado" estaria motivado, Maximiliano partiu com a namorada e o amigo (o administrador), para encontrar um lugar que dialogasse com a sua fé e alegria.


Cusco. Ali decidiu arrear as mochilas e oferecer um alimento puro, feito de forma totalmente artesanal, somente com elementos que a Pachamama* disponibiliza. Nos convidou para conhecer a sua casa em San Blaz e sua "oficina". Ficamos muito curiosos quanto às leveduras e pães que levavam até três dias fermentando, mas não houve oportunidade. De qualquer modo já estávamos no lucro. Conhecê-lo e aos seus elaborados e deliciosos pães, era já um privilégio sem tamanho.
Maximiliano conhece o Brasil de uma temporada memorável no Rio de Janeiro. Adora a nossa gente, nossa comida e nossa música. As cantoras, sobretudo. Falou da Marisa Monte cheio de amor. Como faz realmente muito tempo que não vem por aqui, tratei de atualizá-lo, deixando escrito num "papel de enrolar pão", o nome da Roberta Sá entre os de outras bem legais dessa geração. Imagino que ele agora anda escutando também a Céu e a Mariana Aydar.
Este felicíssimo encontro com o panadero chileno só reforçou a minha convicção de que na minha vida eu mesma devo amassar o pão. E nunca, mas nunca mesmo, dar esse gosto ao cão, ora pois. Se dói o cotovelo, se a fé está comprometida, se o medo se aboletou na garganta, se a esperança foi pousar noutra freguesia, mão na massa.


Converter a agonia em agradáveis cor, aroma e sabor, que se tornam plenos quando partilhados. A julgar pela paz e saúde do Maximiliano, e pela alegria que o alimento produzido por ele nos proporcionava, qual a dúvida? Vamos lá, Dona Menina e Seo Menino? Eu não tenho o conhecimento e a experiência do citadíssimo padeiro, mas divido com o senhor e a senhora minha humilde receita de pão de beterraba, que muito cheia de ousadia batizei de Sagrado Coração da Terra. É que Eros disse certa vez que meu pão vinha das estranhas da terra, posto que o elemento mais, digamos assim, vistoso, é uma raiz. E lindamente vermelha!


Encha a casa de boa música. Pegue o liquidificador, coloque 50ml de óleo vegetal de sua preferência, um ovo, uma beterrada em cubos, 100ml de leite morno, uma colher de sopa rasa de açúcar e meia colher de sopa rasa de sal. Bata. Fica muito bonito. Despeje numa tigela e adicione 20g de fermento biológico. Misture batendo de levinho com um garfo. Vá acrescentando o trigo aos poucos. Cerca de meio quilo. Experimente misturar integral e comum. E vá misturando com a mão até que a massa esteja consistente o bastante e possa ser transferida para uma mesa ou bancada de sua cozinha, devidamente limpa e enfarinhada para evitar que grude. Se possível cante enquanto amassa. Vá adicionando mais farinha, se sentir necessidade. Amasse mais. Sempre com delicadeza e respeito pelo alimento. Quando estiver bem homogêneo, divida em três bolas e distribua numa assadeira. Envolva com plástico filme, mas deixando folgadinho. Este coração precisa de espaço para descansar e crescer por uns quarenta minutos. Ih, minha caixa torácica refratária tem andado mesmo apertada.


Leve ao forno médio pré-aquecido. Deixe assar por trinta minutos, talvez um pouco mais. Fornos variam muito. Observe até que fique com a casca douradinha, sem exageros. Como nas primeira e última fotos. Enquanto esfria, termine de espantar a tristeza convocando amigos com quem dividir seu Sagrado Coração da Terra. Se não conseguirem comer tudo no mesmo dia, saibam que não vale por mais de três, sendo o último já na geladeira. Sirva com patês, queijos, geléias... Eu só não consigo crer numa combinação com guacamole ou homus. O que lhes apresento foi devorado com requeijão e este fotogênico ghee que eu mesma fiz. Pus o link do passo a passo no post anterior. É só ir lá e clicar.


E são estes encontros, processos, artesanias, sonidos, aromas e alimento tão simbólico, nutritivo, saboroso e colorido que eu, pedindo a bênção da Pachamama*, gostaria de celebrar com vocês neste capítulo.

Do fundo do meu coração, buen provecho!

Ceronha Pontes

P.S.: Ovo-lacto vegetariana. Desculpaê, oh, veganos! E o próximo episódio vem carregado de paixão. Melhor dizendo, Passione. Sonhem.

* Pachamama quer dizer Terra, em quechua, a língua dos Incas. Estando em Cusco, é impossivel não incorporá-la ao vocabulário.

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