sábado, 21 de junho de 2014

Como Água para Chocolate - receitas em verso e prosa


CAPÍTULO V

Sopa de abóbora com gorgonzola¹

"Vi um incêndio de girassóis na alma de uma lesma".
Manoel de Barros




Tem esperança na alturas, embora lhe doa voar. Caminhando é que enfrenta o desafio. Cansaço, vertigem. Pausa. Demora-se no que só é possível encontrar naquela montanha. Enormes animais extintos, por exemplo. Desmaia.
Quanto tempo? Porque agora sente tudo em futuro do pretérito.
Acordaria numa casa muito velha cravada numa clareira por onde se derrama uma lua bem gorda. Ouviria risos. Fantasmas. Por certo algum lhe havia resgatado. Caminharia até uma janela entreaberta, de onde enxergaria o jardim adormecido. Estaria em paz.
Exploraria em seguida todos os cômodos e reconheceria perfumes, livros, quadros. Não há retratos. Perseguiria o cheiro bom que vem de repente da cozinha. Sobre a mesa, "um incêndio de girassóis", pensaria em verso emprestado de um poeta seu amigo. Teria agora certeza de ter estado ali. Encontraria eco seu riso mais feliz, enquanto recitaria, como se poesia, um a um, cheios de vida, os ingredientes e o modo de combiná-los.
Não guardaria nomes de abóboras, só as cores. E precisaria da mais amarela. Lhe bastariam quinhentos gramas. Temperos de outras cores. Cebola, alho, alho poró, pimentão, tomate, salsinha. Não exageraria no sal.


Sem nada de gordura, cobriria com água fervente e deixaria cozinhar por tempo suficiente para visitar outras falas do mesmo Manoel que há pouco lhe serviu ao espanto. Saberia de si tal como está escrito:
"Sei de conchas em mim ouvindo hinos.
estou em vão".
Se perderia no livro verde com o nome do autor em garrafais azuis. Até que se lembraria do prazer em andamento.  Suspenderia o fogo. É preciso saber, no meio da brincadeira, deixar esfriar um pouco. O faria. Processaria. Transformaria em sopa cremosa da cor de um girassol ao acordar. Levaria ao fogo outra vez. Ao ferver, apagaria e acrescentaria cerca de uma colher de sopa de creme de leite para cada quatro ou cinco conchas e, já no prato, queijo gorgonzola à vontade. Serviria com pão australiano coberto com leve camada de ghee, para ensolarar ainda mais a noite pretérita, que desde quando foi, presenteia futuros e mais futuros com a mais cara inspiração.



Seja feliz.

Ceronha Pontes

P.S.: Canção que cantaria para este girassol? Esta. Embora triste.

¹ Este prato quem me apresentou foi a Laura, amiga da Shu. Jantaríamos em sua casa em Campinas. Quando estávamos no meio do caminho, ela telefonou pro Dé (marido da Shu e meu irmão) e pediu para que ele parasse em algum supermercado para comprar o tal queijo. Eu não podia suportar sequer o cheiro do danado. E fiquei tentando desde aquela hora encontrar um meio de evitar o prato sem ser desagradável. Não teve jeito. Acabei tomando a sopa e me apaixonando pelo gorgonzola.

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