sábado, 21 de junho de 2014

Como Água para Chocolate - receitas em verso e prosa


CAPÍTULO V

Sopa de abóbora com gorgonzola¹

"Vi um incêndio de girassóis na alma de uma lesma".
Manoel de Barros




Tem esperança na alturas, embora lhe doa voar. Caminhando é que enfrenta o desafio. Cansaço, vertigem. Pausa. Demora-se no que só é possível encontrar naquela montanha. Enormes animais extintos, por exemplo. Desmaia.
Quanto tempo? Porque agora sente tudo em futuro do pretérito.
Acordaria numa casa muito velha cravada numa clareira por onde se derrama uma lua bem gorda. Ouviria risos. Fantasmas. Por certo algum lhe havia resgatado. Caminharia até uma janela entreaberta, de onde enxergaria o jardim adormecido. Estaria em paz.
Exploraria em seguida todos os cômodos e reconheceria perfumes, livros, quadros. Não há retratos. Perseguiria o cheiro bom que vem de repente da cozinha. Sobre a mesa, "um incêndio de girassóis", pensaria em verso emprestado de um poeta seu amigo. Teria agora certeza de ter estado ali. Encontraria eco seu riso mais feliz, enquanto recitaria, como se poesia, um a um, cheios de vida, os ingredientes e o modo de combiná-los.
Não guardaria nomes de abóboras, só as cores. E precisaria da mais amarela. Lhe bastariam quinhentos gramas. Temperos de outras cores. Cebola, alho, alho poró, pimentão, tomate, salsinha. Não exageraria no sal.


Sem nada de gordura, cobriria com água fervente e deixaria cozinhar por tempo suficiente para visitar outras falas do mesmo Manoel que há pouco lhe serviu ao espanto. Saberia de si tal como está escrito:
"Sei de conchas em mim ouvindo hinos.
estou em vão".
Se perderia no livro verde com o nome do autor em garrafais azuis. Até que se lembraria do prazer em andamento.  Suspenderia o fogo. É preciso saber, no meio da brincadeira, deixar esfriar um pouco. O faria. Processaria. Transformaria em sopa cremosa da cor de um girassol ao acordar. Levaria ao fogo outra vez. Ao ferver, apagaria e acrescentaria cerca de uma colher de sopa de creme de leite para cada quatro ou cinco conchas e, já no prato, queijo gorgonzola à vontade. Serviria com pão australiano coberto com leve camada de ghee, para ensolarar ainda mais a noite pretérita, que desde quando foi, presenteia futuros e mais futuros com a mais cara inspiração.



Seja feliz.

Ceronha Pontes

P.S.: Canção que cantaria para este girassol? Esta. Embora triste.

¹ Este prato quem me apresentou foi a Laura, amiga da Shu. Jantaríamos em sua casa em Campinas. Quando estávamos no meio do caminho, ela telefonou pro Dé (marido da Shu e meu irmão) e pediu para que ele parasse em algum supermercado para comprar o tal queijo. Eu não podia suportar sequer o cheiro do danado. E fiquei tentando desde aquela hora encontrar um meio de evitar o prato sem ser desagradável. Não teve jeito. Acabei tomando a sopa e me apaixonando pelo gorgonzola.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Como Água para Chocolate - receitas em verso e prosa


CAPÍTULO IV

Arabaião
(Com purê misto ao curry)


Deixar o Ceará, e sem esperança de retorno, putz, que difícil! E apesar, trago também boas recordações do meu primeiro destino longe de lá: Foz do Iguaçu, no Paraná. Eu poderia, por exemplo, lhes contar sobre o maior espetáculo que já vi, onde a protagonista, a Lua Cheia, ameaçava se atirar na Garganta do Diabo¹. Porém, ando sensível além da conta e só de pensar na moedinha que eu, confesso, atirei sim naquelas águas noturnas revoltas, depois de fazer um pedido beeeem difícil, me arrisco a chorar aqui o suficiente para encher as Cataratas. 
Vamos direto pra Arábia? O salto exigirá menos das pernas do que a geografia sugere. Simples: Foz reúne grande número de imigrantes árabes e não fiz qualquer resistência à sua culinária, muito pelo contrário, adotei alguns pratos. Sempre com aquele toque pessoal, por algumas razões. A casa é vegetariana, eu já disse trocentas vezes. E melhor seria dizer ovo-lacto vegetariana uma vez que, indiferente aos protestos do digníssimo, continuo a inserir ovos, leite e derivados no cardápio. Segundo, é que gosto mesmo de fazer interferências que não descaracterizem o prato, e pelo terceiro motivo, que é a minha pouca fé em conseguir alcançar as legítimas características de algo que não me pertence. Sendo assim, ADAPTAR, é o nome da brincadeira.
Sem dúvida uma feliz descoberta a daquele arroz com lentilha batizado de Mjadra. Baião de Dois, só que árabe. A receita é simples e de dar raiva, uma vez que NUNCA, como disse há pouco, consegui alcançar o sabor original que tantas vezes desfrutei nos restaurantes que frequentávamos. Nem aquela cebola frita sem-vergonha que finaliza o prato eu consigo realizar bem. Então decidi dar um carinho cearense à mistura árabe, apelando para a pimenta de cheiro e o coentro, por exemplo. Ah, porque é preciso esclarecer aos de "outro mundo" que Baião nunca é de Dois, exatamente. Além do bom e velho arroz com feijão (feijão verde, peloamorde!) o meu, eu tempero pra valer, abdicando, no Arabaião, da nata ou do queijo coalho derretido, que é para não me distanciar tanto assim da Mjadra. E também opto por cozinhá-lo em caldo natural de legumes. O caldo artificial em tablete que usei na receita inaugural foi uma concessão.
Vamos começar?
Use a mesma medida para a lentilha e o arroz (integral). Aqui a receita é para dois, então usemos meia xícara de cada. Deixe-os de molho juntos por uma hora mais ou menos. Enquanto isso preparemos o caldo com pedaços grandes de cenoura, abóbora, inhame e chuchu, temperados com cebola, pimentão, tomate, coentro e cebolinha. Dá para entender as quantidades vendo a foto, eu espero, pois já estamos na quarta receita e é chegado o momento de revelar que cozinha não é uma coisa assim, tãããão exata. Exige olho, sensibilidade. Exercite.



Refogue o dentinho de alho em meia colher de sopa de ghee², adicione a cebola e deixe refogar um pouquinho mais e então chegue com o pimentão, tomate, coentro e cebolinha. Ponha os legumes, sal a gosto, cubra com água fervente e deixe cozinhar. Deve render uns quatro copos americanos de um caldo delicioso, que você vai coar e reservar. Reserve também os legumes cozidinhos para o acompanhamento. Passou uma hora? Pois lave bem o arroz com a lentilha e deixe-os escorrer por uns dez minutos.
Nesse tempo pique uma cebola pequena, um pedaço de pimentão cujo tamanho é a sua sensibilidade quem vai determinar, uma pimentinha de cheiro, alho poró e cheiro verde a gosto. Quem não gostar de coentro então mande ver só na cebolinha mesmo, não substitua por salsinha porque esta não combina com Baião, mesmo o Arabaião.


Panela no fogo, derreta uma colher de sopa rasa de ghee, então refogue um pouco a cebola antes de adicionar o pimentão e a pimenta de cheiro picados juntinhos, e o alho poró. Continue refogando. O arroz integral tem um tempo de cozimento maior que o branco, por isso o colocamos junto com a lentilha desde o começo e eles agora entram no refogado. Mexa um pouco mais. Despeje o caldo de legumes (reservando um dedinho deste no copo americano, pois vamos precisar adiante). Acerte o sal com cuidado, pois o caldo já traz um pouco, e adicione parte do cheiro verde, guardando um pouco para finalizar o prato. Mantenha uma chaleira com água quente do lado para, se necessário, adicionar ao Arabaião, garantindo-lhe o perfeito cozimento. Não resulta al dente, mas é firme. Ao servir, coloque o restante do cheiro verde por cima. O sabor, o perfume e o colorido das verduras frescas são a finalização perfeita.
Acompanhado de uma legítima e bem gelada cajuína, nosso Arabaião aqui apresentado, está servido com um purê misto ao curry, cuja receita vem nas notas de rodapé.
Este prato é o preferido da Catherine, da série Lettre D'Amour³, aqui do blog, e que a Marion prepara com todo amor. "Operação Mjadra", batizou Charlotte. Para elas é uma comida do tipo "levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima". E eu sigo a orientação vez ou outra. Como agora.
Bem, na tristeza ou na alegria, experimente.


Eros garante que das quatro receitas compartilhadas até aqui, esta é a melhor. Ah, mas eu cuidarei para que a espanhola do primeiro capítulo não seja esquecida.
Bom proveito.

Ceronha Pontes

P.S.: Eu cozinhava escutando o digníssimo estudar os intervalos de Vaccaj. Se você tiver um tenor em casa, vá lá. Do contrário e, se aceita, minha sugestão neste exato momento em que lhe escrevo, não é paranaense, nem árabe, nem cearense. Bora pro México? Julieta nos leva.

Notas:
¹ Garganta do Diabo é a maior queda d'água das Cataratas do Iguaçu. Vê-la de muito perto (do lado argentino) sob a lua cheia é um grande espetáculo da natureza. Nessas noites as pessoas jogam moedas depois de fazerem seus pedidos. Ainda não alcancei o meu, mas...

² Ghee é a manteiga clarificada. Destituída da lactose. Se os veganos quiserem estar ainda mais seguros, optem pelo azeite, mas o sabor do ghee é inigualável. Depois que o descobri, margarina é finada. Nordestinos que queiram substituir pela manteiga de garrafa, aff, que vai ficar bom demais.

³ Lettre D'Amour, é uma série aqui do blog, que já teve duas temporadas. A primeira de julho a setembro de 2011. A segunda em janeiro de 2014.

E o purê misto ao curry, nada mais é que os legumes que deram o caldo do Arabaião, machucadinhos e somados ao dedinho do caldo que reservamos, lembra (?), onde se deve adicionar uma pitada de curry e acertar o sal. Numa panela pequena leve o caldinho ao fogo. Quando ferver ponha os "legumes" machucados e mexa bem. Está pronto. Eu servi com parmesão ralado grosso por cima. Os intolerantes, é claro, devem dispensá-lo.

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Intervalo I


"Caracol é uma solidão que anda na parede".
(Manoel de Barros)

A próxima receita está a caminho. Vem das Arábias se misturar com nosso Nordeste. Enquanto isso recebemos visita para o café da manhã.
poetas noturnos, cujos versos impedem ou atormentam o sono. E isso, embora pareça, nem sempre tem más consequências. Podendo ser boas, até. Ou não.
Mas há os poetas próprios para as manhãs, mesmo que falem de coisas irremediavelmente anoitecidas. E um deles sentou-se à mesa do café conosco. Penso que gostou da tapioca com queijo coalho bem assado. E nos serviu estes versos. Eles nos emocionam. Nos faz sentir menos sós saber de solidões como a nossa por aí. Por aqui, aliviando as pelejas com boa comida e boa música. Ambas feitas em casa. Mas o mundo vai além da casa. Às vezes penso que a casa nem está no mundo. A casa está por fora. Nós estamos por fora.
Diz aí, Manoel, enquanto vou coar outro café, fazer um bolo de fufá...

ELEGIA DE SEO ANTÔNIO NINGUÉM

Sou um sujeito desacontecido
rolando borra abaixo como bosta de cobra.
Fui relatado no capítulo da borra.
Em aba de chapéu velho só nasce flor taciturna.
Tudo é noite no meu canto.
(Tinha a voz encostada no escuro. Falava putamente.)
Estou sem eternidades.
Não tenho mais cupidez.
Ando cheio de noites pelas juntas como os velhos navios naufragados.
Não sirvo mais pra pessoa.
Sou uma ruína concupiscente.
Crescem ortigas sobre meus ombros.
Nascem goteiras em todo canto.
Entram morcegos aranhas gafanhotos na minha alma.
Nos lepramentos dos rebocos dormem baratas torvas.
Falo sem alamares.
Meu olhar tem odor de extinção.
Tenho abandonos por dentro e por fora.
Meu desnome é Antônio Ninguém.
Eu pareço com nada parecido.
(Manoel de Barros)

Pois o Renato Teixeira sentiu o cheiro do bolo assando e se juntou a nós. Capaz desse negócio, de triste, ficar feliz. É pra o que devia servir cozinhar, cantar, viver.




segunda-feira, 16 de junho de 2014

Como Água para Chocolate - receitas em verso e prosa


CAPÍTULO III

Passione


Uma cama apaixonada
se faz com oito maçãs
colhidas no Paraíso,
descascadas, divididas
em quadrados pedacinhos,
banhadas em xícara chá
de suco bem concentrado
de fruit de la passion¹.
Além de uma colherinha
de pó de canela-da-índia,
deite uma xícara chá
do açúcar demerara,
saudável e bem escurinho.
Com fogo brando por baixo,
apurar devagarinho,
perfumando a casa inteira,
até reduzir gostoso
o caramelo azedinho.

Espalhe o doce carinho
em recipiente ousado,
que possa brincar com fogo,
depois ficar bem gelado.
Firme, a cama do desejo?
Pois então chegou a hora
de cobri-la com manta aerada
de um amarelo clarinho,
cheirosa e amanteigada.


Toda paixão tem veneno
e não me diga que não,
pois se de outro modo fosse,
era outro sentimento,
outra receita, então.
Ore, deixe de preocupação!
A quantidade é tal,



que passam longe de ser
o tipo veneno mortal.
Farinha de trigo? Só uma xícara chá.
Açúcar branco, cinco colheres apenas.
Das de sopa. Agora é só misturar.



Comece com cem gramas
de manteiga de tablete,
uma gema sem a pele,
e as tais cinco colheres
daquele veneno alegre.
Resulta em creme bonito,
mas contenha sua gula,
que agora é a vez da farinha
se misturar de mansinho,
contando de vez em quando
com a ajuda de um pouquinho
de mais suco concentrado
do nosso maracujá.
Deste, um copo americano
faltando só um dedinho.
Sabe a gema implicada?
Conte também com a clara.
Em neve.
É ela quem deixa a manta
toda fofinha e aerada.
Sem esquecer o fermento.
Uma colher das de sopa
que entra ao final da mistura,
e faz crescer a passione².

Repouse esta bela manta
sobre a cama apaixonada
e leve ao forno médio
por tempo suficiente
para deixá-la dourada.
Ou até que um palitinho
enfiado com carinho
saia limpinho, limpinho.
E que paixão não se enfeita?
Sobre ela ainda quente
espalhe um punhado de açúcar
misturado com canela.
E assim, linda e cheirosa,
te convida ao pecado
esta cama saborosa.
                                        

Bon appétit!

Ceronha Pontes

P.S.: Se preferir, coma gelada.

¹ Fruit de la Passion, apelido do maracujá.
² Ouça enquanto cozinha.

domingo, 15 de junho de 2014

Como Água para Chocolate - receitas em verso e prosa



CAPÍTULO II

Sagrado Coração da Terra


Cusco, ainda. Vínhamos de uma visita ao luthier Toríbio, acompanhando a evolução da guitarra de Eros, cuja alma, como ele gosta de dizer, é de jacarandá. Troncos, raspas e muito pó de madeira pelo chão. Instrumentos esboçados, outros a meio caminho andado. A obra em processo. Como isso me estimula! Adoro oficinas.
Os instrumentos acabados disputando espaço na vitrine. Charangos, requintos, violinos e até uma harpa lindíssima em exposição.  E ainda merecer observar, conversar, conhecer a família do artesão. Maria (a esposa), e os três filhos: Claudia(violinista), Lisbet Ingrid e Juan Gustavo. O lugar e aquela família, tudo de uma simplicidade invejável. Nascidas de Mãe gentil e Pai tímido que passa seus longos dias esculpindo instrumentos musicais, as crianças esbanjavam saúde e contentamento. Claudia chegou a me ensinar algumas palavras em quechua. Inti e chaska, foram as que fixei na conversa de dias antes. Sol e estrela.
A gente saía desses encontros cheios de fé na vida e nas pessoas. Abertos a descobrir o outro e a dar de nós.


E foi com esta disponibilidade que topamos com o Maximiliano. Certo que não foi exatamente um acaso. Caminhando sem compromisso de chegar a lugar nenhum, decidimos comprar pão integral numa minúscula, mas muy especial panederia, onde um moço muito bem educado nos atendera outro dia. O moço que, soubemos agora, era o administrador, não estava. Quem nos recebeu foi o Maximiliano, o padeiro. Um chileno sem idade, com cara de dezenove, que eu acho que vai chegar aos cem do mesmo e feliz jeito. Elegeu Cusco para viver e cumprir sua missão. Sim, ele nos contou entre honestíssimas gargalhadas, que meditava em alguma praia do mundo e que eu não me lembro qual, quando recebeu a canalização. Um sinal divino ordenando-o a fazer pães. E ele não fez a egípcia. Tratou de tomar conhecimento do ofício que lhe colocou o Grande Mistério. Trabalhou com um padeiro muito respeitado no Chile e depois de aprender o que ele lhe queria ensinar, e assegurar-se de que existiam segredos que ele não lhe revelaria, e que tampouco tomaria cuidados que só alguém que recebesse "o chamado" estaria motivado, Maximiliano partiu com a namorada e o amigo (o administrador), para encontrar um lugar que dialogasse com a sua fé e alegria.


Cusco. Ali decidiu arrear as mochilas e oferecer um alimento puro, feito de forma totalmente artesanal, somente com elementos que a Pachamama* disponibiliza. Nos convidou para conhecer a sua casa em San Blaz e sua "oficina". Ficamos muito curiosos quanto às leveduras e pães que levavam até três dias fermentando, mas não houve oportunidade. De qualquer modo já estávamos no lucro. Conhecê-lo e aos seus elaborados e deliciosos pães, era já um privilégio sem tamanho.
Maximiliano conhece o Brasil de uma temporada memorável no Rio de Janeiro. Adora a nossa gente, nossa comida e nossa música. As cantoras, sobretudo. Falou da Marisa Monte cheio de amor. Como faz realmente muito tempo que não vem por aqui, tratei de atualizá-lo, deixando escrito num "papel de enrolar pão", o nome da Roberta Sá entre os de outras bem legais dessa geração. Imagino que ele agora anda escutando também a Céu e a Mariana Aydar.
Este felicíssimo encontro com o panadero chileno só reforçou a minha convicção de que na minha vida eu mesma devo amassar o pão. E nunca, mas nunca mesmo, dar esse gosto ao cão, ora pois. Se dói o cotovelo, se a fé está comprometida, se o medo se aboletou na garganta, se a esperança foi pousar noutra freguesia, mão na massa.


Converter a agonia em agradáveis cor, aroma e sabor, que se tornam plenos quando partilhados. A julgar pela paz e saúde do Maximiliano, e pela alegria que o alimento produzido por ele nos proporcionava, qual a dúvida? Vamos lá, Dona Menina e Seo Menino? Eu não tenho o conhecimento e a experiência do citadíssimo padeiro, mas divido com o senhor e a senhora minha humilde receita de pão de beterraba, que muito cheia de ousadia batizei de Sagrado Coração da Terra. É que Eros disse certa vez que meu pão vinha das estranhas da terra, posto que o elemento mais, digamos assim, vistoso, é uma raiz. E lindamente vermelha!


Encha a casa de boa música. Pegue o liquidificador, coloque 50ml de óleo vegetal de sua preferência, um ovo, uma beterrada em cubos, 100ml de leite morno, uma colher de sopa rasa de açúcar e meia colher de sopa rasa de sal. Bata. Fica muito bonito. Despeje numa tigela e adicione 20g de fermento biológico. Misture batendo de levinho com um garfo. Vá acrescentando o trigo aos poucos. Cerca de meio quilo. Experimente misturar integral e comum. E vá misturando com a mão até que a massa esteja consistente o bastante e possa ser transferida para uma mesa ou bancada de sua cozinha, devidamente limpa e enfarinhada para evitar que grude. Se possível cante enquanto amassa. Vá adicionando mais farinha, se sentir necessidade. Amasse mais. Sempre com delicadeza e respeito pelo alimento. Quando estiver bem homogêneo, divida em três bolas e distribua numa assadeira. Envolva com plástico filme, mas deixando folgadinho. Este coração precisa de espaço para descansar e crescer por uns quarenta minutos. Ih, minha caixa torácica refratária tem andado mesmo apertada.


Leve ao forno médio pré-aquecido. Deixe assar por trinta minutos, talvez um pouco mais. Fornos variam muito. Observe até que fique com a casca douradinha, sem exageros. Como nas primeira e última fotos. Enquanto esfria, termine de espantar a tristeza convocando amigos com quem dividir seu Sagrado Coração da Terra. Se não conseguirem comer tudo no mesmo dia, saibam que não vale por mais de três, sendo o último já na geladeira. Sirva com patês, queijos, geléias... Eu só não consigo crer numa combinação com guacamole ou homus. O que lhes apresento foi devorado com requeijão e este fotogênico ghee que eu mesma fiz. Pus o link do passo a passo no post anterior. É só ir lá e clicar.


E são estes encontros, processos, artesanias, sonidos, aromas e alimento tão simbólico, nutritivo, saboroso e colorido que eu, pedindo a bênção da Pachamama*, gostaria de celebrar com vocês neste capítulo.

Do fundo do meu coração, buen provecho!

Ceronha Pontes

P.S.: Ovo-lacto vegetariana. Desculpaê, oh, veganos! E o próximo episódio vem carregado de paixão. Melhor dizendo, Passione. Sonhem.

* Pachamama quer dizer Terra, em quechua, a língua dos Incas. Estando em Cusco, é impossivel não incorporá-la ao vocabulário.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Como Água para Chocolate - receitas em verso e prosa


CAPÍTULO I

Arroz Chaufa Vegano da Ceronha


Na cidade de Cusco (que linda Cusco!), no Peru, nem o pouco oxigênio foi um inimigo nosso. Ofegar subindo e descendo suas ruas era até divertido.
Atraída por ladeiras e explico. As cidades históricas de Minas Gerais fazem festa no meu imaginário desde quando eu era criança. Influência da minha Mãe, que mesmo não conhecendo Minas naquela época, falava daqueles lugares com a intimidade de adoradora do Aleijadinho, grande referência para a sua arte. Depois o Ganymédes José apresentou à minha meninice A Ladeira da Saudade, o que imediatamente me despertaria a paixão por Marília de Dirceu, do Tomás Antônio Gonzaga. Quando tive a oportunidade de ver tudo isso de perto, me senti a própria Maria Dorotéia, musa do referido poeta.
Dito isto, creia: ladeira, e de paralelepípedo, irresistível convite. Lá no alto estão grandes amores dos tempos mais remotos querendo ser inspiração. Duvida?
Cusco. Se precisa de um incentivo, beba um té de hoja de coca e suba, suba, suba, suba, por esta calle angosta y empinada que nos leva a San Blaz. Existe arriba um restaurante cuja comida é a más rica que experimentei até qui, com proposta vegetariana. Destaque para as samosas veganas e o arroz chaufa. Este último uma comida tipicamente peruana, mas que foi desenvolvida por imigrantes chineses em Lima. Quem nos servia? Uma espanhola de Andaluzia. Nos quedamos, Eros y yo, igualmente encantados com a beleza da chica. Até o legítimo indiano instalado nas proximidades da Plaza de Armas, nos perderia para sempre desde aquela visão increíble. Todos os dias subir a ladeira, admirar a espanhola e saciar os desejos com sabores capazes de fazer a alegria da mais infeliz entre as infelizes criaturas.
Aí eu perguntava ao digníssimo outro dia o que ele desejava almoçar. Me responderia entre suspiros que arroz chaufa. Imediatamente a lembrança da espanhola, com aqueles olhos expressivos, aquela flor de boca, a tez branquinha contrastando com a farta cabeleira negra, me fez aceitar de pronto a doce provocação. Ok, arroz chaufa! Óbvio que eu já tinha pesquisado sobre a iguaria, mas estava disposta a deixar a minha marca no prato, sem descaracterizá-lo. O que eu chamo de minha marca entenda-se por retirar o alho (Eros não gosta muito de) e acrescentar pimenta de cheiro + açafrão + alcaparras + quiabo e também o modo de preparar a soja. Sim, lá no restaurante de San Blaz eles substituem a carne por soja e ainda acrescentam a cenoura. O post anterior deixou claro que nossa casa é vegetariana, sim? Sigamos.
Meça uma xícara de chá cheia de proteína de soja escura e graúda. Coloque numa tigela e cubra com água fervente. Ela deve ficar imersa por dez minutos. Escorra em uma peneira, jogue água fria e esprema o excesso de água com delicadeza. Corte um a um os pedaços hidratados e macios em pedaços um pouco menores, para que tomem mais gosto e enfeitem melhor o prato. Numa frigideira aqueça uma colher de sopa de manteiga clarificada, o famoso ghee. Retire do fogo e desmanche aí um tablete de caldo de legumes. Acrescente ervas finas a gosto e 1/3 de copo americano de vinagre balsâmico. Volte ao fogo, coloque a soja e vá mexendo para que esta seja totalmente envolvida pelo tempero. Ponha num refratário e siga com a mistura para o forno médio até que fique bem assadinha. Assim a soja ganha um pouco de firmeza e acento no sabor. Reserve.
Em uma panela aqueça uma colher de sopa de azeite de oliva (extra-virgem, por favor), adicione uma pimenta de cheiro picadinha e oito quiabos cortados em cubos. Refoque bem. Este procedimento vai eliminar a baba do quiabo. Acrescente 3/4 de xícara de chá de arroz integral e refoque-o. Cubra com a água fervente, sal a gosto e deixe cozinhar. Enquanto isso corte em cubos grandes uma cebola média e um pimentão médio (da cor de sua preferência, podendo misturar). Corte em cubos menores um tomate bem vermelho. Cheiro verde a gosto. Um pedaço razoável (o razoável fica a seu critério) de gengibre beeeemmm picadinho. Um pouco de alcaparras e uma cenoura média cortada na diagonal em fatias finas e cozidas al dente. Tudo pronto? Vamos mezclar.
Numa panela grande (estas nos dão liberdade para mexer e mexer) aqueça quatro colheres de sopa do virgem azeite. Refogue um pouco a cebola antes de adicionar o pimentão. Junte o gengibre. Refogue bem. Depois a cenoura e as alcaparras. Acrescente ao refogado uma colher de chá de açafrão e meio copo americano de shoyo. Por último o tomate, que é para ele não amolecer. Acrescente imediatamente a soja e o arroz. Misture bem. Sirva quente com cheiro verde por cima. Fica mais bonito e saboroso. Eu falo de coentro e cebolinha, mas, os que preferirem salsinha fiquem à vontade.
Nas fotos aparece uma taça grande toda trabalhada no suco concentrado de uva, fazendo as vezes de vinho tinto, já que o degustador oficial da série não ingere bebida alcoólica. Do outro lado da mesa eu desfrutava do MEU Chaufa com uma cerveja negra. Super combinação. Não era a famosa e deliciosa cerveja Cusqueña, mas estava bem boa.
Éramos dois, embora a receita sirva três comilões. É que a espanhola não veio. Nem virá assim direta e perturbadora da ordem. A espanhola está. Linda. Nos dá alegria. Nos dá fome. Ela inspira e convida à alquimia. Por causa dela subimos ladeiras apostando no amor e, vejam vocês, saímos de Tamboril, estivemos em Andaluzia, passamos pelas Minas Gerais dos Inconfidentes, fomos a uma Cusco enamorada da China e terminamos assim: eu no Recife, vocês aí, espalhados sabe Deus por onde, e bem-vindos toda vida.
Buen provecho!!!!

Ceronha Pontes

Mais de perto.

P.S.: No próximo episódio, Sagrado Coração da Terra.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Como Água para Chocolate - receitas em verso e prosa


INTRODUÇÃO

Abrindo os trabalhos

Além do ofício de minha paixão, o teatro, meu prazer também passeia, embora sem o mesmo compromisso, pela cozinha e a escrita. Carecendo aliviar as tensões próprias dos abismos que se colocam entre uma obra e outra, resolvi então juntar minhas outras duas alternativas de alegria na série que inauguramos agora aqui no blog.
Os interessados não façam cerimônia, podem entrar.
Começamos por Tamboril e estamos na casa da Vovó. Quantas delícias! Inesquecíveis as tardes em que arrumávamos as assadeiras com os bulins. Biscoitos de goma que ela e Tia Zélia preparavam. Uma amassava, a outra abria e cortava e a gente colocava dois na forma e um na boca, porque até cru o negócio era bom. Tondequinha sempre vigiando o forno à lenha para que os biscoitos não queimassem. Como numa história fantástica, de tempos em tempos, guiados por Vovó e Tia Zélia, entrávamos nessa espécie de mágica e terna fábrica para adoçar as nossas relações. Naquelas tardes aprendi que cozinha agrega, alegra e dá esperança.
Tia Zélia  assumiu a "diretoria" faz tempo. Talento e generosidade não lhe faltam para o comando de tão sagrado lugar. Mantém-se o velho fogão à lenha a todo vapor. Não teve modernidade que roubasse de nós o feijão e os doces produzidos de forma tão deliciosamente arcaica. É uma cozinha conhecida por todo tamborilense. Visita aqui não quer saber de outro canto da casa. Muito menos nós.


Do outro lado da praça, artista, minha Mãe sempre preferiu enfiar a mão em outra massa e nunca escondeu que não gostava de cozinhar. E eu ficava impressionada com o fato de que, ainda assim, ninguém fizesse bolos mais saborosos que os seus. No final de 1984 ela caiu doente. Teve que ficar uma longa temporada internada em Fortaleza. Coração. Voltaria de lá com um marca-passo. Foi quando eu assumi a cozinha da casa com então 12 anos. Cozinhava uma porcaria, mas o Papai não reclamava jamais. Eu sabia que estava ruim. Me mantinha incentivada porque ele era absolutamente compreensivo e carinhoso. Aprendi rápido e a alegria do velho com cada acerto me estimula para sempre. Quando a Mãe voltou, indiferente às explicações de Freud, ela também gostou.
Já em Fortaleza, o vegetarianismo só começou a me fazer a cabeça quando o Eros voltou da Índia em 1999. Ele que já não comia carne vermelha, entendeu que os bichos de carne branca mereciam igual consideração. Ainda não consegui abandonar de todo a minha "crueldade", mas, curiosa e abusada, concordei que em nossa casa, nada de bicho morto. Adorei o desafio. De tal modo que, hoje em dia, se eu tiver que temperar um bife vou ter dificuldades.
Sirvam esses três breves recortes da minha trajetória como "cozinheira", para assegurar-lhes de que meu modesto repertório compreende os melhores sentimentos. Cozinhar, para mim, é salvador. Não há tristeza, raiva, dor que resista a um punhado de ervas finas. Por isso estamos aqui.
Quero com esta fartura de letrinhas dar início à série Como Água para Chocolate - receitas em verso e prosa, onde compartilharei dez das receitas praticadas por mim no dia-a-dia. Algumas autorais, outras adaptadas e todas aprovadas por quem tenha desfrutado. Sem grandes produções de imagens, e eu até que gostaria. Por outro lado pode ser bom. Uma cozinha sem instrumentos mirabolantes, os pratos fotografados com uma câmera comum, tudo muito próximo de qualquer um que deseje empenhar o seu amor nesta brincadeira de doar-se. Acredite, também há ganhos. Eles são inevitáveis e preciosos.
O abusadíssimo nome da série, claro, inspirado no romance da mexicana Laura Esquivel, que se transformou num celebrado filme dirigido por Alfonso Arau. Pois bem, contando que Tita, a cozinheira-bruxa da história, nos abençoa, damos a largada. O próximo post traz a receita de estreia: Arroz Chaufa Vegano da Ceronha. Sugiro ver o filme enquanto esperam. Isto pode tornar mais agradável e estimulante a nossa brincadeira.

Ceronha Pontes
Recife-Pe

P.S.: Vocês estão sentindo um cheirinho bom? É o cheiro do canteiro da Vovó. Ela cultivava, a gente colhia. Penso que até hoje ela semeia lá de cima, porque me pego colhendo cada coisa!



Pesa o quanto leve


Vem por aí a novíssima série "Como água para chocolate", me aguardem.
Enquanto isso, fiquem com "A insustentável leveza do ser".

Solidão,
Que poeira leve.
Solidão,
Olhe a casa é sua.
E no meu descompasso
o riso dela...

TOM ZÉÉÉÉ!!!!!!!

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Segunda classe


"e cobertos de terra perderão o brilho 
enquanto as amadas dançarão um samba 
bravo, violento, sobre a tumba deles."

Mais do Carlos. Tão divertido o Carlos. Morro de rir, Carlos.




domingo, 8 de junho de 2014

Fiofó dos ôto


Com um escrotíssimo "seja forte!", encerrou Antônio Pedro a nossa conversa de outro dia. Ora, mas que mania feia do mundo, e do Antônio Pedro igualmente, essa obrigação da fortaleza. Mania de cravar as pernas bambas em salto alto quando nem de rasteirinha se agüenta. E não basta. É preciso prestar contas com as redes sociais. Força e alegria inabaláveis ostentadas em selfies deploráveis, com os dizeres de "ocupado em ser feliz", eu agüento?
Ah, minha amiga, mas a alegria, falsa que seja, inclui. Experimente ser triste e veja.  Ainda que também a tristeza não escape da transitoriedade, quem suporta? Tristeza, mesmo ligeira, não vende, Nêga. E se não vende, não compra. E se não compra, está por fora. Por fora, meu bem, é onde me encontro e me vem o Antônio Pedro, depois de tudo que contei a ele, com um "seja forte"? Olhe que estou me segurando para não enfiar o que me arde no "fiofó" de Antônio Pedro, só para ver o pinote.
Mas sabe que é capaz que ele nem sinta? É sim. Vai se habituando com a aspereza da superfície, se entretendo com a cachaça... Ô mulher, o Antônio Pedro não bebe, eu sei. A cachaça é só uma metáfora. Ele vai se iludindo com essa alegria de vitrine, de modo a perder a capacidade da inadequação...
Tu não estás entendendo, Maria Alice? Qual é a parte que te falta compreender, Maria Alice? Estou te dizendo que estou triste, Maria Alice, e não sei quanto tempo vai durar. Que estou portanto inadequada, indesejada, persona non grata, mulher. E não seja louca você de me mandar ser forte. Porque eu não nego o fracasso e o luto, criatura. Quando a vida nos convida, está inclusa no pacote, de tempos em tempos, esta agonia. Não vai adiantar essa cagação de regras para estar por dentro, padecendo de virtual felicidade. "Sorria, você está sendo filmado". Pois vou aparecer dando o dedo. O mesmo com o qual eu enfrentaria o cu de Antônio Pedro. E o teu, Maria Alice. Pimenta eu tenho. Não seja louca. Conversa de "seja forte"... Ora, ora. 

Ceronha Pontes

sábado, 7 de junho de 2014

HUECO


Dói não, Maria. O peito? Assim, só o peito mesmo? Dói nada.
Un hueco, um oco. Vazio é desprovido de sensação.
O que dói, este sim, é o coração. Menina, o pobre músculo foi subtraído feito fosse um mal, foi o que me contaram. Feito fosse um câncer.
Maria, para onde vai o câncer depois de passada a faca? Em que monturo ele termina de apodrecer depois de desdenhado, extraído e cuspido fora? Pois é lá que está o coração, bola de carne infeliz e sem serventia, pobre, podre e desgraçada, com a "vermarada" fazendo a festa.
Aliás, o esvaziamento podia ser geral, não? Bem me levassem as tripas, o tutano... Quê mais?
Porque, Maria, eu não vou te mentir: um nada desses era muito do bem-vindo à cabeça, por exemplo. Un hueco se abrisse, onde nem eco, compreendes? Só o oco esquecimento, e fosse doer o pensamento lá onde dói o coração. Hein, Maria, sabes onde? Pois num diga não. Deixe lá, deixe quieto, deixe de confusão.

Ceronha Pontes

quarta-feira, 4 de junho de 2014

A visita


"Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos."
(Carlos Drummond de Andrade)

Eu estava com catorze ou quinze anos, já tinha saído de casa para estudar em outra cidade, e a falta que me fazia conversar mais amiúde com meu Pai foi um pouco atenuada pela descoberta de um poeta mineiro que se tornaria meu melhor amigo na adolescência. Um companheiro fundamental naqueles anos em que precisei ser muito forte para não me desviar de meu propósito e me render à saudade. Drummond se destaca entre os que me encorajavam.
Tem sido quase sempre assim, quase sempre longe de mim os que me protegem e movem. Algumas pessoas talvez eu nunca veja ou reveja, mas sinto um prazer imensurável se lhes alcanço rastros, vestígios.
Falo disso porque o Carlos veio fazer visita noturna. E quando recebo visitas assim, acordo velha. Mas velha de velhice muito velha, coisa antiga mesmo e muito bem vivida. Sendo o caso de, com alguma vaidade, eu não lhes negaria, enxergar já naquela mocinha dos catorze ou quinze as marcas de tempos longos. E eu fico me achando, sabe? Digna de me sentar agorinha com Hilda e Lygia para falar da vida. Ou calar. Que silêncio tão denso e caro seria!
Agora chega. Faz-se necessário pôr a máscara de viver e caçar tarefas que me valham algum respeito. Deixo-lhes com a Drica Moraes recitando versos de minha sábia e Andrade visita.

Ceronha Pontes



segunda-feira, 2 de junho de 2014

Escafandrista nº2


"Eu sabia que você vinha para partir, 
deixando-me a tristeza da lembrança e nada mais."
(Delmira Agustini)

Lamento essas relações reduzidas a um número mínimo de caracteres, que espremem o sujeito nas mais toscas abreviações e figurinhas... Me faltou o adjetivo para as figurinhas.
Porque eu gosto mesmo é de me esticaaaaaaaar em linhas e mais linhas, nem me importando se lidas ou não.
Herdei de minha Avó materna a vocação. ADORO CARTAS!!! 
Meu gosto pelas danadas já rendeu a este blog, entre outras correspondências, duas temporadas da série Lettre D'Amour, "invasão" à intimidade de Charlotte, Marion, Isabelle, Catherine e Hélène, minhas adoráveis mulheres. Também escrevo cartas aos poetas de minha estima, vivos ou mortos.
Ontem à noite mergulhei outra vez nos poemas da uruguaia Delmira Agustini. Mal pude dormir. Despertei inquieta para lhe escrever. Mas queria lhe escrever lá dos meus 28 anos, a idade em que ela foi assassinada. Porque eu me lembro bem o que eu vivia e as referências já alcançadas naquela época, de modo que é dali que me parece ainda mais duro o seu desaparecimento precoce. Ah, Delmira! Desta vez não consegui uma linha, minha querida. Me perturba uma inspiração que não acha meio. Porém, obcecada por ocupar este meu empoeirado espaço virtual com uma carta que dissesse a ti, ou de ti, tomei a liberdade de vasculhar a tua correspondência íntima e deixar que leiam de tua própria escrita os tormentos de mal realizada paixão por aquele argentino que eu não conheço, e trato de imaginá-lo pelo que tu sofres e revelas. Ao leitor que se interesse, é pôr-se no lugar de Manuel Ugarte e receber:

“Sua carta me fez quase mais mal do que seu silêncio. Eu acreditei que 
você me interpretasse melhor. Estou certa de não haver dito em meu arabesco 
literário uma coisa apenas que não fosse a verdade, e que não fosse, isso sim, 
mais pálida que a verdade. E o mais estranho desse caso é que protesto contra 
suas palavras, e, no fundo, talvez, dou-lhe razão. É certo, eu não fui 
absolutamente sincera com você. Mas pense você que existem sinceridades 
difíceis. Esse ligeiríssimo véu artístico era quase necessário... Pense você que eu 
devo adivinhar e dizer. Pense você que tudo o que lhe disse e digo poderia se 
condensar em duas palavras. Em duas palavras que podem ser as mais doces, as 
mais simples, ou as mais difíceis e dolorosas... Pense você que essas duas 
palavras que eu pude em consciência lhe dizer no outro dia em que lhe conheci, 
tiveram que se afogar em meus lábios, já que não em minha alma. Para ser 
absolutamente sincera eu precisava dizê-las; eu precisava dizer que você 
atormentou minha noite de bodas e minha absurda lua de mel... O que parecia 
uma novela humorística, converteu-se em tragédia. O que eu sofri aquela noite, 
nunca poderei dizer. Entrei na sala como um sepulcro sem qualquer consolo a 
não ser pensar que o veria. Enquanto me vestiam, perguntei não sei quantas vezes 
se você havia chegado. Poderia lhe contar todos os meus gestos daquela noite... O 
único olhar consciente que tive, o único cumprimento inoportuno que iniciei, 
foram para você. Tive um relâmpago de felicidade. Pareceu-me um momento que 
você me olhava e me compreendia. Que seu espírito estava bem perto do meu em 
meio àquela gente incômoda. Depois, entre beijos e cumprimentos, a única coisa 
que esperava era sua mão. A única coisa que desejava era lhe ter próximo um  momento. O momento do retrato... E depois, sofrer até que me despedi de você. E 
depois sofrer mais, sofrer o indizível... 
Você, sem saber, sacudiu minha vida. Eu pude lhe dizer que tudo isso era 
em mim algo novo, terrível e delicioso. Eu não esperava nada, eu não podia 
esperar nada que não fosse amargo deste sentimento; e a voluptuosidade mais 
forte de minha vida foi submergir-me nele. Eu sabia que você vinha para partir, 
deixando-me a tristeza da lembrança e nada mais. E eu preferia isso, e prefiro o 
sonho do que pôde ser a todas as realidades em que você não vibre. Eu precisava 
lhe dizer tudo isso, e mais, para ser absolutamente sincera. Mas, entre outras 
coisas, tive medo de me descobrir muito no fundo, uma dessas pobres almas 
débeis inteiramente rendidas ao amor. Imagine você essa miséria frente ao seu 
sorriso um pouco irônico de poderoso... E eu, soube sorrir tão ironicamente como 
você... 
Já está dito. Se depois disso tudo você voltar a acusar-me de enganadora e 
sutil, eu o acusarei simplesmente de mau intérprete sentimental. Nunca o acusaria 
de nada pior. Nem esperaria que a brisa de primavera me trouxesse perfumes de 
lá para lhe escrever sem saber o porquê. 
E conste que me sinto intimamente ferida.”
(Delmira Agustini)