domingo, 21 de dezembro de 2014

CLARÃO



De nome Clara Lua, tem brilho solar. Brilho e calor. Aqueceu-me de tal modo o peito, que meu coração já pode enfim se apertar e doer em bom abrigo.
Clara Lua me devolveu o gosto pelo céu aberto, restaurando o encanto do azul, inclusive o do mar. O mar que finalmente outra vez me traz notícias de Lá. 
Recolho garrafas coloridas cheias de pedaços de Clara Lua. São risadas, canções, a estampa das saias, algumas lágrimas, segredos, preces, cuidados. As ondas me trazem Clara Lua em nacos de sonhos, raspas de estrelas, pó de estrada.
Guardarei tudo que seja seu no mesmo feliz salão em que estão protegidos os vestígios de Úrsula e Nikolaj. Cada um deles já me salvou de algum modo a vida. Mesmo que nunca mais voltemos a nos encontrar, os tenho em mim, tanto quanto sou eu a lhes serenar. Por todos os séculos e séculos. 
Amém.


Ceronha Pontes

Recife-PE, 19 de dezembro de 2014



quarta-feira, 3 de setembro de 2014

O BAILE



CAPÍTULO IV

"Cada persona tiene que descubrir cuáles son sus detonadores para poder vivir, pues la combustión que se produce al encenderse uno de ellos es lo que nutre de energía al alma."
(Por Laura Esquivel - Como agua para chocolate)

Dançando com Tita


              A atriz mexicana Lumi Cavazos no papel de Tita                 

Precisei dormir. E sonhar. Para estar aqui, nos anos distantes de um outro século, numa festa de casamento no interior do México. Vim para ver a cozinheira, que é pessoa de minha estima. Ouvi seu choro outra vez depois de longos anos. Ela, que desde o ventre da mãe chorava, e que foi justamente empurrada para o mundo por uma torrente de lágrimas. As mais salgadas que alguém já derramou.
Nos reencontranos porque dia desses eu precisei me reequilibrar e o modo mais eficaz que encontrei foi cozinhando. Daí a série imediatamente anterior a "O Baile", "Como água para chocolate ", serviu-me de escapatória. Saborosa escapatória. Se hoje danço, é muito graças a Tita, que me lembrou de também poder a tudo na vida traduzir ou converter em delicado prazer, através deste dom que temos em comum, sendo que eu numa condição ainda bem amadora. No sentido que mais importa, nós duas, AMADORAS. Foi por amor que eu vim.


Entro na cozinha. Tita está preparando o bolo dos noivos.
- Também já temperei o meu bolo de banana com algumas lágrimas. 
Ela se espanta com minha presença, mas depois me abraça forte. Soluçamos. Ela repara que já não sou uma mocinha.
- Sim, minha querida, lá fora o tempo passa. Mas não é uma alegria que ainda possamos nos reconhecer em tempos e planos de existência tão distintos? E que possamos nos consolar mutuamente? Acredite, vamos até rir juntas ainda, durante esta mesma festa que te dói como se o enterro fosse, do ser amado.
Ela me conta o que eu já sei, mas, ao ouví-la, sei mais sobre o que me espantou também, certa vez. Ela fica curiosa. Não consigo lhe dizer muita coisa. Mais confundo que explico sobre como, na minha história, terminei por odiar o verbo "subtrair". Na condição de objeto subtraído não tem graça nenhuma. Graça deve ter para o sujeito da ação que com muito orgulho alardeia seu feito de livrar-se do mal, amém.  No caso, livrar-se também do "mau". Objeto mau, que faz mal. Ela não entende, é claro, e voltamos a falar de Pedro e Rosaura.
- Tenho ganas de surrar Rosaura, Tita. Ela não tinha o direito. Vi como ficou feliz em se exibir com Pedro para o teu sofrimento. Sei exatamente o que sentes ao vê-la desfilar vitoriosa ao lado dele. Vitoriosa por te ferir, enfim. Chegou longe demais. Casar-se com ele? E não espere que ela se desculpe algum dia pela covardia. ELA NAO O FARÁ. Não acha que te deve isso e te advirto que os desdobramentos desse enlace te exigirão muita força e amor. Mas tu és forte e amorosa para seguires até onde for. E de como tudo isso termina, não posso te dizer senão o que agora nem podes entender. 
E digo a ela qualquer confusão sobre detonadores, sobre o fogo, o ardor. E sobre o contrário: fósforos umedecidos¹.
bolo ficou pronto. 
Eles, Rosaura e Pedro, já disseram o sim. Os convidados são servidos. São, em verdade, enfeitiçados pela comida de Tita, que lhes aflora o inconfessável. Tita quase não suporta, mas insisto que ela deve esperar até partirem o bolo. É quando todos começam a chorar a dor de Tita e a de seus próprios amores traídos, interrompidos. Neste momento, intoxicados, estão todos à beira do rio, vomitando a sua agonia.  Imploro por um pedaço desse bolo a Tita, porque tantas vezes quis (quero) vomitar meu coração, mas ela me impede. Me lembra outra vez que o nosso lugar é no preparo das poções. Neste momento lhe antecipo que deverá aprender a fazer codornas com pétalas de rosas. Que ela deve ir investigando, criando, porque haverá de usar dessa "mandinga" mais cedo ou mais tarde. Ela ri. Me emociono por fazê-lá rir. 


- Vamos escapar daqui, Tita. Tua mãe não demora a punir-te pelo estrago. Vamos comemorar só nós duas essa primeira pequena vingança. Tu vais tomar gosto por praticá-las, sem que isso te comprometa a bondade. És tão especial, Tita!
Ela é quem me arrasta para o sótão. Não sem antes passarmos pela cozinha, de onde carrega uma garrafa de vinho e um pedaço de pão. Deste banquete comeremos o pão de véspera e nada mais. Subimos. Ela tranca bem a porta. Tiramos os sapatos e rodopiamos livres. Por umas frestas podemos observar o desespero de Rosaura, a confusão de Pedro, a fúria da mãe, e rimos. Rimos muito. Até chorarmos. Convido-a para dançar. Ela me lembra que não há música aqui e que não devemos fazer barulho.  Ignoro. Tomo-a pela cintura e a conduzo enquanto canto bem baixinho, de modo que só nós duas e algum querido leitor possa escutar.


Quem mais saiba, me acompanhe sussurrando:

Tonada de la luna llena²

Yo vide una garza mora
dandole combate a un rio.
Asi es como se enamora
Tu corazon con el mio.

Luna, luna, luna llena
Menguante.
Luna, luna, luna llena
Menguante.

Anda muchacho a la casa
Y me traes la carabina
Pa' mata este gavilán
Que no me deja gallina.

La luna me esta mirando
Yo no se lo que me ve
Yo tengo la ropa limpia
Ayer tarde la lave.

Luna, luna, luna llena
Menguante
Luna, luna, luna llena
Menguante.

Hoooo, luna llena, pongate.

Ainda me lembro de ter dito a ela que era uma música vinda de outro filme, que aprendi com um cantor de minha terra. Ela não entende nada muito bem a esta altura. Eu acordo. Tenho os olhos molhados e sinto gosto de fósforo na boca, embora a pele, estranhamente, esteja perfumada de alecrim. É tudo.

Ceronha Pontes

Notas:

1- "Claro que también hay que poner mucho cuidado en ir encendiendo los cerillos uno por uno.
Porque si por una emoción muy fuerte se llegan a encender todos de un solo golpe producen un resplandor tan fuerte que ilumina mas allá de lo que podemos ver normalmente y entonces ante nuestros ojos aparece un túnel esplendoroso que nos muestra el camino que olvidamos al momento de nacer, llevándonos a la misma muerte." 
(Laura Esquivel - Como agua para chocolate)

2- Canção que Cetano Veloso canta no filme de Almodóvar, A Flor do meu Segredo. Eu não lembro quem a compôs.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

O BAILE


CAPÍTULO III

Dançando com Marie


Ela metida num vestidinho branco de estampa floral, sapatos vermelhos (já usei sapatos vermelhos por sua causa), cabelos presos como os de sua mãe. Seu batom também é vermelho. Eu não uso batom vermelho porque mata meus olhos, cada vez menores dentro dessas molduras roxas. Já Marie, não tem batom nem nada no mundo que apague seus olhos. Eles contam histórias de muito longe em seu brilho e lindeza.
Hoje temos música ao vivo. A uma hora dessas o salão já esvaziou um pouco. Sobretudo, Jacques Desmoulins deixou o baile. Neste momento, e não creio que por coincidência, a banda toca Elisa¹.
Marie gira muito, está me deixando tonta. Eu queria ter seguido Jacques, era com ele que eu deveria dançar neste capítulo, mas também não resisto a Marie. Ela sai correndo, voa pela escadaria. Já vi isto acontecer antes. Está sem ar. Tem falta de ar quando suas perdas se impõem. Corro atrás dela para o caso de, desesperada, se atirar no mar. Há tubarões por aqui e Marie não é o tipo que obedece aos avisos de perigo. Mas ela cai na areia. Não se levanta mais. Me aproximo cuidadosa. Sento ao seu lado. Ela não me olha, mas sinto sua permissão para ficar. Vai recuperando o fôlego aos poucos. Sou direta.
- Jacques se assustou com a semelhança entre você e Elisa. 
Ela olha o mar. Seus olhos têm a cor do mar e escorrem para ele. Acho tão bonito vê-la chorar. Parece cruel, mas acho.
- Não vim ao baile por sua causa, apesar de ter ficado a noite inteira hipnotizada por sua figura. Vim por Jacques. Compreendo bem a perplexidade de Jacques, a decepção, o medo diante de uma Elisa até então desconhecida. É duro descobrir-se amando uma estranha, Marie. Alguém que você jurava ser sua cúmplice, dona de seus segredos. Jacques não é o tipo do homem cheio de melindres moralistas, imagine. É um artista. Seu olhar, seu coração, sua música, compreendem  e comportam o humano. O que ele não foi capaz de suportar foi se ver de repente acusado de coisas que desconhecia. Foi não reconhecer Elisa. Foi desejar aquela estranha, aquela mulher que ele não sabia mais do que era capaz. Para mim é mais fácil compreender Elisa, não julgá-la, nem correr para bem longe como ele fez. Mas ela não é a minha mulher, Marie. Me sentisse desse modo enganada, ah, sou muito capaz de fugir como ele fez. De nunca mais saber o que fazer com Elisa em mim. 



Assim, de fora, posso observar e compreender as fraquezas de Elisa. Do mesmo modo posso olhar para Jacques com compaixão e ternura. Te adianto que tu poderás em breve ver tudo melhor, aliviando os pesares. Jacques não podia adivinhar que ela estava grávida. E tanto naquele momento como agora, quem pode afirmar que seja seu pai? Ele está tão atormentado quanto você. Eu também fico confusa ao vê-los. Me apego à certeza de que tu, quando livre desse ódio imenso vais, enfim, ser feliz. É injusto não ser feliz, Marie. Se não estamos, é preciso encontrar os meios para. Agora que o conheces, já podes perdoá-lo. Nunca houve exatamente razão para condená-lo. Se ele foi fraco, Elisa, e eu lamento, foi mais. Se ela não resistiu ao desamparo, ele até hoje padece bêbado e desgraçado.



Marie nem precisava que eu lhe dissesse essas coisas. Já havia constatado  desde quando não conseguiu atirar em Jacques. Todo o resto foi esforço vão para não admitir. Eu é que me dou conta de que falo para mim. Quando olho para Jacques, penso na sua dor, na sua fuga, me ponho a refletir sobre as minhas incapacidades, sobre a minha covardia. E eu sequer consigo tomar um bendito de um porre. Dançar, talvez. Escrever bobagens...


Marie tira os sapatos, levanta-se e segue andando sem pressa pela areia. Penso em Solange, porque agora mesmo me sinto como ela quando entendeu que não estaria outra vez na vida com Marie. Penso em mim e naqueles que talvez não reveja, mas que me são tão especiais e tão definitivos.
Ainda é possível avistar Marie. Ela começa a dançar enquanto avança em direção a algum lugar onde estar com Jacques, é certo. Eu não consigo me levantar, mas as minhas mãos dançam tímidas, adivinhando a canção (tão óbvia!) pelo modo e o ritmo com que Marie se move. Ela desapareceu. Elisa (a canção) se agiganta no meu peito. Quase surda, escorro para o mar à minha frente.

Ceronha Pontes

Nota: ¹ Élisa é um filme francês de 1995, dirigido por Jean Becker e estrelado pela minha musa Vanessa Paradis e pelo imenso Gérard Depardieu. O filme é uma homenagem à canção homônima de Serge Gainsbourg. Tem também no elenco a Clotilde Courau como Solange. 
Gosto de olhar para Jacques, gosto de usar seus olhos para ver e repensar escolhas.



sábado, 16 de agosto de 2014

O BAILE


CAPÍTULO II

Dançando com Ennis


Me demorei porque precisei deixar o salão, tomar um ar. Não havia ar o bastante nem lá fora. Pensei que fosse morrer. O coração rejeitando o peito, a garganta que nem milagre cura, um peso impeditivo nas pernas, nas asas. E ainda esse monte de coisa ruim no entorno (repare que vivo no Recife e os dias estão pesados por aqui). Que tempos estranhos! O Outro me afeta. De qualquer modo prefiro isso a um coração oco. Deve ser de uma solidão muito grande a incapacidade de se por no lugar do Outro.
Voltei agora pro salão porque vi o Ennis entrar. Ennis del Mar¹. Sua timidez me exige chegar já atirando o correspondente a uma montanha sobre o balcão. Ainda assim ele quer fugir, mas eu já estava preparada e lhe digo que esta não é a sua, mas a minha montanha. Ele compreende e se afeta. Me surpreende olhando nos meus olhos. Abaixo a cabeça. Juro que não esperava que ele me acolhesse tão depressa. Arisco, o Ennis.
Ficamos calados por muito tempo como se fôssemos cúmplices há uma vida longa. Quando enfim ergo a cabeça ele havia me servido uísque. Sem gelo. 
Continuamos sem dizer coisa alguma até a terceira dose. É quando eu falo a primeira bobagem. Alguma obviedade como a perda implicada em qualquer escolha. A gente sempre tende a achar que a escolha dos outros valeu mais a pena. 
- Você, por exemplo, está vindo agora do casamento de sua filha, acertei?
Ele confirma enquanto eu já engato um choro bêbado sobre a minha falta de recompensa. Ele tenta me impedir as próximas doses. Em vão. Já completamente sem censura, falo da morte de Jack tentando convencê-lo de que tudo pode ser muito pior, acreditam?
- Jack morreu levando Brokeback, compreende? Você, por sua vez, não importando onde, estará sempre ligado a Brokeback. Retido. Amor de eternidade, veja você. Isso é que é sina! Você ficou sozinho,é verdade e eu te entendo  tão bem a covardia, Ennis. Jack foi embora puto da vida besta dele, mas ainda assim o fogo que lhes pertence arde nas noites frias da montanha, eternamente, compreende?
Ele faz que sim, gentil. 
- Agora quando a covardia leva ao desamor, meu amigo, ah, isso você não saberá nunca. Mas eu te conto. Põe mais uma. Anda, Ennis, não serei mais gente depois desta. Pra encerrar, juro. 
Ele acredita e me serve generosamente. 
- Imagine você, em cujo brilho do olhar do outro/a aparecia sem defeitos... Não, entenda, não que não os tivesse, mas esses eram tão sem importância para o outro/a. Veja bem, agora o outro/a se pergunta como foi que conseguiu amá-lo, Ennis. Consegue imaginar? Agora ele/a sabe o quê em você é feio, fedido, de gosto duvidoso... Você que era aquilo tudo, reduzido a uma coisa feia, fedida, de gosto duvidoso. Não venha me chamar de inteligente a uma horas dessas, seu maricas covardão! Se tudo o que sobra aos olhos do outro/a é a tal da inteligência, vou nem completar o pensamento. O caso é que a recompensa não veio. Aquilo pelo quê me acovardei diante da minha própria alegria, não veio e não virá. Todo mundo vem com esse papo furado de que ainda há tempo, mas eu gosto mesmo, Ennis, é de gente que dá a real. Não me venha você repetir a ladainha dos falsos. Carrego a minha montanha em vão e pronto. Nem montanha é. Uma lagoa. Ao redor da qual, em vez de ovelhas pastando, há gente andando de bicicleta. Eu prefiro bicicleta a cavalos, cowboy. Neste momento, nem uma coisa nem outra. Você vai ter que me levar de volta... Eu ia dizer me levar de volta naquele seu carro caindo aos pedaços, mas, de volta pra onde? Nós somos dois covardes, sem eira nem beira, Ennis del Mar. E só quem tenha feito esta opção saberá o quanto pesa. Só repito que você teve mais sorte. Teve sim. Acaba de casar a sua filha linda. Vai ter netos, Ennis, não te parece uma boa recompensa? Já a minha covardia me deixou a zero. E eu não quero mais pensar. Dancemos, cowboy. Seja cavalheiro. Me leve até a vitrola, eu mesma quero escolher a canção. Aqui... A moedinha... Esta... Este compositor é velho amigo. Um dia te conto.
Ennis me abraça daquele seu jeito sem jeito. Sei que chora. Neste momento eu já sequei. Ele pensa em Jack. Eu... Não quero mais pensar.
Dançamos.

Ceronha Pontes

A canção:

Nota:
¹ O ator Heath Ledger, que interpretou tão comoventemente o Ennis del Mar no lindíssimo Brokeback Mountain, morreu de overdose de drogas legais, aos 28 anos de idade.


sexta-feira, 1 de agosto de 2014

O BAILE


CAPÍTULO I

Dançando com Timoteo

"Gli amori sono quasi tutti uguali
La differenza adesso falla tu..."
(Gli amori - Toto Cotugno)



Aquele ali no balcão, ainda de jaleco, é o Timoteo. Exausto. Aliviado, sobretudo. Sua filha Angela acaba de renascer, depois de um acidente. Alfredo, o colega que abriu a cabeça da menina, não a deixaria morrer, todos esperavam. Rezei. A mãe está lá com ela, prometendo desfazer-se da cabeleira também, em solidariedade. Claro que o fará.


Senti recentemente mais uma vez o gosto amargo da morte. Sei a exata agonia de Timo. Sei o quão pequeno ele se encontra neste momento. Angela sobreviveu sim, e isto é tanto! Mas nada neste mundo, nesta vida, tornará mais amena a falta de Italia, o fato de não ter conseguido evitar aquele aborto infeliz e suas trágicas consequências.
Opa, Timo pediu vodca. A última vez que o vi se entupindo de vodca, resultou na violência contra Italia. Temo que ele abandone o bom senso e se repita. Duvido, no entanto, que haja outra como ela, e que um ato desta natureza possa desdobrar-se novamente em amor. Aquilo foi único. Devo me aproximar.


Chego bem perto, peço uma água natural e sem gás. Ele me reconhece, diz que já me flagrou várias vezes espionando-os. Confirmo que tenho estado sempre à espreita, desde que os conheci. Que sei detalhes de todas aquelas relações. Que amei Italia desde o primeiro instante. Desarma-se quando digo que a amei porque vejo a vida de um ângulo muito próximo de onde os olhos dele. Então encosta sua garrafinha de bebida na minha taça de água, me surpreendendo com um brinde. A quê? Pergunto. Ele silencia. Recordo os olhos mortos de Italia apontando para o além. Ergo a taça em silêncio e bebo.


Quer saber se lembro de Elsa. Digo-lhe que Elsa, sua esposa, não é uma mulher de quem se possa esquecer. Que enquanto caminhava para o mar metida naquele maiô preto que deixava à mostra a sua estupenda brancura, combinada com uma farta e bela cabeleira dourada, emoldurando aqueles olhos fora do comum, ah, segui-a! Até certo ponto, é claro, pois a lembrança de Italia põe Elsa e quem mais num segundo plano. Disparo:
-Não é possível que Elsa não tenha visto a tua confissão escrita enormemente na areia, Timo. Ela não se importou, eu penso. Elsa não é mulher de se importar  com nada que não julgue ser uma ameaça a ela própria.



Como eu tive coragem? É melhor me controlar para evitar falar demais sobre Manlio. Manlio entra na história quando a vaidade de Elsa finalmente permite que ela perceba o risco. Ela só não seria capaz de imaginar Italia. Nem Manlio, colega e melhor amigo de Timo, seria capaz de imaginar que por alguém como Italia, ele tenha sido capaz de interromper a decolagem daquele avião por exemplo.
- Timo, me sinto privilegiada por enxergar Italia. Alcançar-lhe a beleza. De me comover com ela. Se não comove, não é belo, não é assim?  É por isso que antes de Elsa, linda dentro do maiô, entrar no mar, mudamos a direção do olhar, perscrutando aquela que nos causa espanto, que nos faz confrontar nossa própria miudeza. Pequenos, eu e tu, nos entregamos à Italia. 



Explico-lhe que ela sabe que estou aqui. Que elevei meus pensamentos e ela me consentiu. Sim, acho justo buscar o consentimento daqueles com quem me envolvo. Lealdade. Do mesmo modo, e isso eu contei a vocês dois posts atrás, que eu não sujeitaria Timoteo à visão suspeita de nós duas (Italia e eu). Ele quase ri, seguro. Recuso a vodca que me oferece. Agora ele abaixa a cabeça e chora cansado. Aquele choro de quem sabe que já está tudo bem e, em companhia confiável, esvazia o corpo da dor e do medo que abrigou enquanto Angela estava em risco na sala de cirurgia. Chora e chora. Não o mesmo choro desesperado que o levou a quebrar tudo naquele hospital de fim de mundo onde morreu Italia. Mas o choro do alívio. Eu também choro.


Peço outra água. Esta ele divide comigo.
Conto-lhe sobre o filho que perdi há uns poucos anos, ele fica nervoso. Acalma-te, eu digo, explicando que, ao contrário de Italia, que tomou ela mesma a decisão por não se julgar capaz de ser uma boa mãe (eu e ele sabemos bem o motivo de ela pensar assim), quem decidiu que eu não seria boa mãe foi meu próprio filho. Em menos de seis semanas me abandonou. Foi-se embora sangrando e doendo como eu não poderei esquecer. Choro mais. Dessa perda e surpresa má ele também entende, posto que chegou tarde demais e daí seguiram os trágicos acontecimentos de sua vida. Por tudo isso quis me abraçar e então eu disse espontaneamente a frase que aguardei uma vida o direito e o momento certo de:
-Non ti muovere.
Ele se espanta e obedece. Continuo:


- Non ti muovere¹. Quando sinto dor, preciso estar solta na imensidão. Não se trata da arrogância de recusar ajuda. Esta eu também tenho, mas não é o caso agora. É necessidade de dar espaço pro ar que me falta encontrar-me os pulmões. Só por isso. Conheço criaturas semelhantes a Italia. Em carne, Timo. Sei o mundo de coisas raras e fundas que são capazes de desvendar para nós. E também te entendo os desatinos, porque padeço de semelhante humanidade. Por isso estou sempre à espreita, te observando de longe, ou de tão perto que mal podes supor. Porque tu me ajudas no entendimento de mim mesma. O quanto possível, já que a gente passa a vida pelejando e não se aprende a si mesma inteiramente. Isso tudo termina sempre com uma interrupção. Findamos incompletos. Cheios de ausências. As tuas ausências me doem, pela similaridade com as minhas. Mas eu não devo te importunar mais. Elsa está precisando de apoio, e é certo que prefere tua companhia à de Manlio. Ou não tinha feito tudo o que fez. 
Outra vez ele se espanta com minha observação, mas preferimos não desenvolver a conversa, optando voluntariamente nós mesmos pela incompletude. Digo-lhe que gostaria de me despedir dançando. Ele se dirige à vitrola, põe uma ficha e me surpreende. Eu esperava ouvir Un senso², mas ele prefere me dizer outra coisa. Agora sim, permito o contato. Rostos colados, cúmplices, úmidos e salgados, dançamos Gli amori³.

Ceronha Pontes

Notas:
¹ Non ti muovere, filme de Sergio Castellitto, inspirado no romance homônimo de sua esposa Margaret Mazzantini, com ele próprio no papel de Timoteo. Penélope Cruz como Italia, Claudia Gerini como Elsa, Elena Perino como Angela, Marco Giallini como Manlio, Pietro de Silva como Alfredo, entre outros. Adoro o filme e realmente me encontro no olhar de Timoteo.
² Música de Vasco Rossi que marca muito o filme.
³ Canção de Toto Cutugno que toca no carro quando Timo e Italia pegam a estrada tentando ainda a felicidade juntos. A vida, porém, tinha outros planos.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Na paz



Parou o coração do Tio Eron. O meu disparou.
Cecé


segunda-feira, 28 de julho de 2014

Demora



É Timoteo entrando no salão. Tenho vontade súbita de correr até lá, mas não posso com seu coração exausto neste momento, também o meu anda mal acomodado na garganta. Tão logo me recomponha lhe ofereço algum descanso. Depois do sofrido renascimento de Ângela, ele vai precisar. Itália por certo não ficará magoada por eu estender a mão a ele. Sabe que eu não arriscaria. Do mesmo modo eu também não seria desleal com Timoteo, sujeitando-o a uma visão suspeita de nós duas. Nunca.
Por enquanto me debruço sobre a obra da Hilda Hilst¹. Sou o seu Ruiska e moro no seu Fluxo-Floema. E já é atividade suficiente para um coração esmagado por uma agonia recorrente que vem do meu sertão. Que tem o tamanho do meu sertão. E queima, como o sol de lá. Quem bem soubesse não cometesse a sandice de confundir-me a tormenta com dor de amor. Eu bem gostaria. São bonitas as dores de amor. Até quando resultam trágicas. Quem bem soubesse, ficasse pianinho, pianinho. Não acrescentasse ao que já me atrapalha tanto na construção deste "porco com vontade de ter asas".
Quando ele finalmente voar, Timoteo, me aproximo, me embriago contigo, te chamo pra dançar. E iniciaremos a série O Baile, na qual dançarei e trocarei confidências com criaturas (da realidade e da ficção) com as quais me identifico. Criaturas que me comovem e me ajudam a ser. O Baile, tal e qual Como Água para Chocolate, tem nome abusado e de filme que me inspira. Com a licença agora do Ettore Scola.

Ceronha Pontes

¹ Trabalhando na Mostra Hilda Hilst - prosa e poesia, que acontece neste 29 e 30 de julho de 2014, lá no Café Castro Alves. Rua Capitão Lima, 280, Santo Amaro, Recife-PE. Sempre às 20h.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Como Água para Chocolate - receitas em verso e prosa


CAPÍTULO X (último)

Doce de leite com rapadura
(geleia geral)

Outro dia um querido, verdadeiro e espetacular chef, com quem estive no terceiro intervalo da série, me lembrou que eu sou atriz. Pois reconheço em mim o dom e o empenho de anos e não estou abdicando do ofício, mas, penso que seja saudável admitir quando a coisa (qualquer que seja) não está te fazendo feliz, e usufruir do direito de explorar outras ações que te asseguram do bem que tu podes. Pois é tanto que não quero como é, que precisei inventar esta série. Cozinhar implica o amor. E amor AINDA é aquela coisa toda. Revisitei minhas memórias, experimentei, amei de novo e com renovada intensidade cada criatura em quem pensei enquanto cozinhava. Incorporei tudo e todos que pintaram nesses dias todos. Não neguei nada. Transformei tudo. Minhas revoltas e rancores não foram vencidos, devo lhe dizer, mas são obrigados a dividir o espaço com melhores sentimentos meus, e essa espécie de compensação me ajuda a levar.
Sobre acolher o que se aproxima, em ser e sentimento, tenho andado com o Torquato Neto me doendo na garganta. Torquato, confesso, demorou a me afetar. Ele me fez companhia por tanto tempo ali pelos dezenove, em livro emprestado de um professor "maldito", mas eu consegui, com toda a minha estreiteza juvenil, que ele passasse batido, na época. Rapaz, eu que já era "amiga" do Drummond e do Manuel Bandeira, tinha algum impedimento com relação ao Torquato e os de sua natureza, que só no fim dos anos 90 eu entenderia, mas não explicarei aqui por uma questão de pudor e segurança também, eu acho. Ui! O fato é que tenho estado com ele e minha carne dói.  Ou antes me dói a carne, açoitada pelo espírito da tristeza funda, e por isso Torquato se achegou. Sei que reli seus versos, ouvi canções, estive obsessivamente atracada com suas últimas palavras e, quando estava já sem ar, converti meu choro em doce de leite com rapadura, temperado com um pouco de cravo. Ê, ê, Seo Minino, "a alegria é a prova dos nove e a tristeza é teu porto seguro".
Eu encerraria a série com uma receita que tenho a ousadia de pensar que me traduz. Cheguei a produzir e fotografar a iguaria, mas tive que mudar o rumo das panelas e atender à minha intuição. Olhar de novo e quantas vezes para o fogão à lenha da casa da Vovó. Não se trata de apegar-me ao passado por desacreditar na sempre possível felicidade futura, mas de não esquecer do que sou feita e desde onde me desdobro. Liguei para a Tia Zélia pedindo as medidas. Por coincidência ela e Tondeca estavam com a panela no fogo justamente preparando esta sobremesa, e o Primo Ed imediatamente me enviou umas duzentas fotos inspiradoras. E você já pode facilmente identificar qual a minha cozinha e a cozinha de lá.


Minha Tia falou da má qualidade das rapaduras atuais, motivo pelo qual já não alcançamos a mesma textura de outrora. Na minha infância o doce de leite com rapadura resultava deliciosamente caroçudo como uma ambrosia. "Hoje as rapaduras não talham mais o leite, e o doce fica liso como se fosse com açúcar", dizia a Tia Zélia. Não importa, eu necessitava reencontrar ao menos o velho sabor e poder dividir com o jovem poeta que me acompanha, alguma esperança.


Ela me recomendou dois litros de leite acrescidos de 250g de rapadura (bem pretinha) e 250g de açúcar (usei o demerara). Adicionei por minha conta suco de 1/4 de limão e quatro cravos machucados.
Ao fogo. Quando levanta fervura, abaixamos o chama.


Só bem lá adiante, quando começa a reduzir e apurar a cor, é que mexemos de vez em quando para evitar que queime no fundo da panela.


Em dado momento, mais perto do fim, precisamos seguir mexendo sem parar, até dar o ponto, que é quando o doce vai desgrudando do fundo, como se fosse brigadeiro.


O meu ficou mais escurinho que o de Tia Zélia e Tondeca. Certamente pelo uso do demerara. Também a textura do meu ficou uns passos a mais em direção à do doce da minha infância. Pensamos que por causa do limão.


Aquele cheiro e sabor me trouxeram breve, mas intenso contentamento, que pude partilhar com Torquato e pensar junto com ele sobre toda a sabedoria e prazer oferecidos pela simplicidade.


Sua figura foi aos poucos se dissipando, de modo que agora sua cara presença é apenas pressentida.Um nozinho no peito, um choro que não se completa. E aquela imensa revolta por tudo de ruim que se instalou desde a partida de meu adorado Pai, me mata hoje menos que ontem. Não sei como será amanhã, mas é saudável lembrar que posso controlar o mal com a doçura que me habita. Doçura nem sempre manifesta, é verdade, mas, legítima. Com ela não jogo nem engano. Pratico. Partilho. E agradeço a quem a desperta. Como a você, Torquato imenso, que tanta comoção me causa. Te dedico, querido poeta, aquela tua A coisa mais linda que existe. E do Gil. Então...
"Na cidade em que me perco,
Na praça em que me resolvo,
Na noite da noite escura,
É lindo ter junto ao corpo
Ternura de um corpo manso
Na noite da noite escura."

Um beijo em cada um que provar disso tudo, com amor,

Ceronha Pontes

P.S.: Em breve iniciaremos uma nova série, cujo nome ainda não foi definido, mas será um imenso salão onde dançarei com pessoas e personagens que me ajudam a ser. Para o episódio de estreia, estarei de rosto colado com Timóteo (Non ti muovere), trocando confidências. Até.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Como Água para Chocolate - receitas em verso e prosa


CAPÍTULO IX

Nhoque de Inhame
(Celebração à Amizade)

Sim, amigo é coisa muito cara, mas na minha vida tenho o imenso privilégio de que não seja rara. Os tenho aos montes. E são os melhores do mundo.
Nesta série eu não poderia deixar de homenageá-los, elegendo um prato que é a especialidade de um deles, e que tenho como se meu irmão fosse. Sintam-se os outros todos representados porque neste momento ofereço um pouco desta delícia a cada um, desde Tamboril até Cuzco, onde fiz os mais recentes.
Venham comigo ao Edifício Fortaleza, 502, lá na Duque de Caxias, centrão de Fortaleza. A porta da cozinha deve estar aberta, é só entrar. A esta altura o Eddie já voltou pro Recife. Este de cueca vermelha rodopiando pelo corredor é o Pedro. As crianças (Iago e Juan) brincam. Marta deve estar na rádio comandando seu programa Por uma cultura de paz e, fazendo experimentos vocais no banho, está o nosso chef Danilo. Eu sou a da cara emburrada que mora no quarto do meio. Visitas aos montes em todas as horas do dia, principalmente da noite. Todos artistas. Intensos criadores. Meus deuses, como fomos felizes! E antes que eu desande a chorar, porque os dias não estão fáceis, e reviver aquela algazarra me emocionaria demais da conta, vamos ao nhoque.


Acho que até hoje o Danilo reúne o povo no fim do mês com fé de que este prato traga um dinheirinho a mais para todos. A verdade é que nenhum de nós enricou, mas somos a fortuna uns dos outros e isso não tem dinheiro que compre.


O nhoque do Dan é de batata mesmo, convencional e delicioso. Ele aprendeu num programa de TV com a saudosa Nair Belo. Não sei se ele lembrava disso, mas eu estou aqui para reavivar sua memória. Enquanto eu, seguindo as orientações da Bela Gil, que faz inquestionável defesa do uso do inhame na dieta, o adotei. Então, em homenagem a todos os meus amigos, em especial ao mestre cuca Danilo Pinho, que introduziu este hábito de nos reunirmos em torno desta massa que promete prosperidade, lhes ofereço o meu nhoque de inhame, com molho natural de tomate com manjericão.
Duas xícaras de chá de inhame bem cozido e espremido. Uma gema sem pele, três colheres de sopa de manteiga ou margarina, sal a gosto. Mais ou menos uma xícara de chá de farinha de trigo. Misture os ingredientes numa tigela, adicionando só a metade da farinha. Espalhe sobre a mesa um pouco da outra metade restante, para que você possa trabalhar sem grudar, e vá adicionando o resto aos pouquinhos, até que ganhe uma consistência que lhe permita fazer os rolinhos e cortá-los como nas imagens. Se precisar de mais farinha para isso, fique à vontade. Para cozinhá-los, leve ao fogo uma panela com bastante água e um fio de óleo. Depois de ferver, vá colocando os rolinhos um pouco por vez. Eles, é claro, começam o cozimento afundando na panela, mas, quando chegam ao ponto, flutuam. Retire-os e repita o procedimento até que todos estejam cozidos. É bem rápido.
                       
                                

Sempre prefiro molho natural e o meu preparo com dez tomates daqueles mais compridinhos e bem maduros. Corte-os com semente e pele mesmo, coloque no liquidificador aos poucos até que esteja tudo batido. Peneire. Numa panela grande adicione quatro colheres de sopa de azeite de oliva extra-virgem. Aqueça. Refogue três dentes de alho picados. Quando dourarem, adicione uma cebola média picada e alho poró a seu gosto e refogue mais. Adicione então a polpa de tomates já peneirada, uma colher de sobremesa de açúcar (para quebrar a acidez), três colheres de sopa de molho shoyu, sal a gosto, um pouquinho de cheiro verde (coentro e cebolinha), dez azeitonas verdes picadas e muuuuito manjericão. Deixe cozinhar em fogo baixo e sem pressa. Até reduzir ou apurar bem, ganhando aquele vermelho tentador.


Nhoque no prato, coberto com este delicioso molho e finalizado com parmesão de verdade, ralado grosso.
Esta receita serve três, mas você pode ir multiplicando por quantos vierem celebrar com você esta riqueza que é a amizade. Ao multiplicar, claro que você vai achar o momento de reduzir a manteiga e as gemas. Já lhe disse mais de uma vez que cozinha é sensibilidade e nada melhor que os amigos para nos ajudarem com isso.


É prato simples. E a simplicidade é mesmo sofisticada. Sofisticação é uma palavra que o Danilo adora e tem tudo a ver com ele, em tudo o que ele faça. Danilo e todos os moradores e visitantes daquele 502, como eu amo vocês!
A vocês e a todos os meus outros amigos, com profunda gratidão, desejo bom proveito.

Ceronha Pontes

Extra: uma canção do Petrúcio Maia e do Belchior pra vocês, cujas lembranças me salvam mais do que vocês possam supor. Incêndio.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Intervalo III


Há tempos em que qualquer solicitação, sobretudo as mais carinhosas, apavoram. Faz-se a "morta" de cozinheira e é já estar viva o suficiente.
Triste dizer não aos gentis, aos amorosos, aos verdadeiros, então ela foge do telefone como o cão da cruz. O fixo, por exemplo, afônico de tanto gritar em vão. Mas hoje, perigando cegar, saiu da caverna. O intento valia o risco e a companhia do CK valia toda concessão à carne de porco frita na manteiga de garrafa, acompanhada de farofa, feijão verde e vinagrete num boteco de mercado. Com cerveja bem gelada, obviamente.
A conversa tinha foco nos amantes M e V.
Estava escuro já, quando se encavernou outra vez.  E não se arrepende um grama do coração acuado no peito atravessando a cidade como se fosse ser encontrado por uma bala perdida. Nem da enxaqueca dos infernos que lhe custou a ousadia. Sim, M e V convidam a doer no inferno e a provar do tempero daquele.
Mais não digo, nem sob tortura.

O vídeo ilustrativo deste intervalo não podia ser outro:


sexta-feira, 11 de julho de 2014

Como Água para Chocolate - receitas em verso e prosa


CAPÍTULO VIII

Bolo de banana com canela

Outro dia esbarrei nos meus escritos dos onze aos treze. Quanta amargura, Carlos! Chega a ser engraçado esse transbordamento de desesperança em ser tão principiante em tudo. Tu não demorarias a chegar em capa dura e vermelha e confiei imediatamente em ti, como poucas vezes me aconteceu na vida e, quando aconteceu, me orgulho de ter sido sempre o certo. Nunca vou poder te agradecer o bastante pela caríssima companhia, que me conduzia o olhar e provocava ideias, me protegendo da rudeza do mundo. Imagino que Papai já tenha te encontrado e te agradecido também, por preencher de alguma forma a sua involuntária ausência.
"Há muito tempo, sim, não te escrevo. Ficaram velhas todas as notícias". Mas creia, também no meu coração "perdura a graça do amor, florindo em canção". Por toda a vida, meu velho amigo. E é tão verdade que quando esta me manda um safanão, é tua sabedoria que se impõe sem que eu precise te buscar. Tu estás. Tu és refúgio constante, ainda que tenhas ficado cada vez mais em silêncio, dividindo generosamente o espaço com os outros que vieram depois. Riqueza, Carlos, é me reconhecer em ti, é ser acolhida em tuas palavras.
Aceitas um conhaque? Eu sim.


Senta-te, que te preparo um bolo com essas bananas à beira do apodrecimento. Acho que gosto de vê-las chegar a esse ponto crítico do amadurecimento, para sentir o prazer de transformá-las antes que se percam definitivamente. Como tu dizias: "para exaltar o redivivo amor que de memória-imagem se alimenta e em doçura converte o próprio horror". 
Tem certeza que não quer o conhaque? Pois não recuse este café forte e me ajude com os ovos. Separe as claras das gemas de três. Ponha uma pitada de sal nas claras, por favor. Minha Mãe diz que ajuda a dar firmeza às claras em neve. Queres bater? Use esses dois garfos. É bem divertido. Enquanto isso eu descasco e machuco as bananas. Machucar com atenção e carinho é possível com as bananas. Melhor não tentar com outras criaturas. Pronto, uma xícara de chá bem cheia de bananas machucadas e doces. Como eu disse, com as bananas não chega a ser uma contradição. Reservemos.


Oh, que lindas claras, Drummond! Ponha as gemas e continue batendo. Obrigada, querido, agora veja que creme tão bonito se misturamos esses ovos batidos com uma xícara de chá de açúcar e um terço de xícara de chá de óleo. Misturamos bem com a colher de pau. Podes medir para mim um pouco mais de meia xícara de farinha de trigo completando-a, até que fique bem cheia, com farinha de aveia? Muito bem, misture as farinhas com canela a seu gosto. Eu gosto um monte de canela. Isso, misture com toda essa muito sua delicadeza, meu caro. Importante agora adicionarmos ao creme produzido as farinhas com canela, alternando com as bananas. Uma parte daquelas, outra parte destas, até o fim. Misturar com cuidado, com amor, afinal o propósito é promover a capacidade de superação das bananas. Difícil superar o que seja em situação de desamor, não é mesmo? Tu sempre repetias, cantando o desassossego para a minha tola juventude que insistia em perseguir o sentido de tudo, que era o "amor, a descoberta de sentido no absurdo de existir".
Ai, acho que necessito outra dose de conhaque. Não temas, meu amigo, ainda sou capaz de misturar esta colher de sopa de fermento em um terço de copo americano de leite. Veja como cresce. Adicionamos à massa do bolo, misturamos com redobrada atenção, que fermento precisa ser muito bem tratado ou ele estraga tudo o que fizemos até aqui. Ponha numa forma redonda de furo no meio, untada e coberta com uma camada fina de açúcar misturado com canela. Este procedimento resulta numa crosta deliciosa envolvendo todo o bolo.
Teu café esfriou, Carlos. Queres que te prepare outro? Ora, não te preocupes, meu anjo itabirano, "a grande dor das cousas que passaram transmutou-se em finíssimo prazer quando, entre fotos mil que se esgarçavam, tive a fortuna e graça de te ver".
Trinta minutos. Trinta e cinco, talvez. Sentes o perfume? Agora prove. Prove com este chá de frutas cítricas, já que recusas o café.


Te vendo aí tão gentil, tão sábio, tão sem pressa diante deste bolo salvador de bananas e de mim, eu penso naquele teu outro verso de Aparição Amorosa: "tua visita, apenas uma esmola". Ele não se aplica a ti, meu Carlos. Não a ti, que há tanto te demoras. São quantas noites em décadas, meu poeta, que tu consolas? Ah, Drummond! "Eu não devia te dizer, mas essa lua, mas esse conhaque, botam a gente comovido como o diabo".

Ceronha Pontes

Atenção!!!
1- Todos os versos citados são do Carlos, é óbvio.
2- Repare que só aparecem dois ovos na foto. Era eu tentando reduzir da receita, mas o terceiro fez falta. USE 3 OVOS.
3- O Chico César é outra boníssima companhia no preparo dessas delicadezas.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Como Água para Chocolate - receitas em verso e prosa


"Adorei as almas,
As almas adorei."

CAPÍTULO VII

Vatapá Vegetariano da Ceronha

Renego a escrotíssima expressão "negro de alma branca". Tou com o Chico César e num abro:
"Alma não tem cor. 
Ela é colorida, 
Ela multicolor".
Deus defenda fosse de outro jeito, e eu estar sujeita a não merecer o desembaraço da mistura. A negritude que me cabe tem as "cadeiras elétricas da baiana", me aproveitando outra vez do compositor paraibano. Negritude sim e quem duvidar repare no meu "pixanim". Além do muito gosto e habilidade com angus apimentados. A-DO-RO comida de preto. Me sacudo todinha só de pensar. E é com o MEU vatapá vegetariano que boto os amigos loucos.
Aprendi a preparar muito cedo esta iguaria, uma vez que é prato por demais distinto e presença garantida nos banquetes tamborilenses. Na falta de camarão no sertão, usamos o frango desfiado mesmo. Sugiro que você dê um rolê pelo google, se lhe interessar a incrível receita original. Eu, no entanto, tive que adaptar o prato, que era um dos preferidos do Eros no tempo em que ele ainda comia bicho. Quis lhe dar este alento quando adotou outra postura. Sucesso total, não sou dada a falsa modéstia. Alegria que dura mais de década conseguir trazer o vatapá para a cozinha vegetariana preservando-lhe as características. É o prato que mais gosto de preparar. Quem me conhece sabe que não poderia subtraí-lo desta série que diz tanto, mas, TANTO de mim, e que lhes ofereço sem reservas.
Em homenagem ao Eros (tou pra ver amor mais resiliente, êta lelê!), aos meus irmãos Dé e Chico, e à sua admirável Mãe Maria, toda negra, toda linda, toda baiana. E como cozinha, a Dona Maria! Odoiá, Mamãe!
Bote uma tecnomacumba na radiola, fazendo o favor. Conhece não? Clique aqui. Clique, Seo Moço e Dona Menina, que aqui preconceito não tem vez. E vamos gingando enquanto rasgamos oito pães franceses dormidos. Adicionamos 1 cebola, 1 tomate e 1 pimentão médios picados. Também 1 pimentinha de cheiro e 2 dentes de alho. Um pouco de alho-poró e bastante cheiro verde. Um pouco de sal e pimenta calabresa a gosto. Detalhe: se você tiver a pimenta malagueta, amasse-a num pratinho misturada com um pouco de leite e só coloque na hora de levar ao fogo. Explicarei adiante. Agora molhe estes pães temperados com 4 xícaras de leite e reserve.


Prepare 1/2 litro de caldo de legumes conforme lhe ensino no capítulo IV, ou use 2 tabletes de caldo de legumes fervidos e dissolvidos nessa mesma medida de água. No caso de usar os tabletes de caldo, não ponha sal no tempero do pão, pois esse caldinho artificial é muito salgado. Reserve.
Vamos à proteína da soja, substituta do camarão nessa proposta. Meça uma xícara de chá bem cheia daquela miudinha que lembra carne moída. Tanto faz se clara ou escura, não altera o sabor. Cubra com água fervente e deixe hidratar por dez minutos. Depois escorra, resfrie em água corrente e esprema delicadamente para retirar todo o excesso. Pique uma cebola pequena e cheiro verde a gosto. Leia-se coentro e cebolinha, nunca fiz com salsinha. Aqueça numa panela três colheres de azeite de oliva extra virgem e refogue bem a cebola. Coloque um pouco de sal e shoyu a seu gosto. Eu devo usar umas 3 colheres de sopa, não sei ao certo, faço no "olho". Use a sua própria sensibilidade para isso, sem esquecer que o shoyu já vem salgado. Acrescente o cheiro verde e refogue bem. Reserve.
Pique 10 azeitonas verdes e também reserve.


Processamos agora o pão no liquidificador adicionando caldo de legumes aos poucos e na medida da necessidade, até que tenhamos um mingau consistente e muito perfumado. Levamos ao fogo e mexemos sem parar. À medida que engrossa vamos adicionando caldo de legumes, até que sobre só um dedinho. É nessa etapa que você deve ir colocando aos poucos a pimenta malagueta e provando sempre para deixar a seu gosto. É também nesta etapa que sentimos a pimenta calabresa, se optarmos por ela, e acertamos a danada, se necessário. Por isso é importante, na hora de temperar o pão, não colocar tanta pimenta. É um ingrediente que inspira atenção e cautela, concorda?
Pois acrescente agora a soja refogada, as azeitonas picadas e o dedinho do caldo que faltava. Mexa bem. Acerte o sal, se você achar que deve. Adicione umas 4 colheres de azeite de oliva extra virgem para finalizar. Misture. Apague e sirva com acompanhamentos suaves. Aqui eu usei uma arrozinho integral feito com cenoura e quiabo e uma saladinha bem besta de alface crespa com tomate. Refeição coroada com uma deliciosa cerveja negra, tal e qual fiz no capítulo I, com o arroz chaufa.


Quando o danado esfria um pouco ganha esta firmeza. Eu lhe garanto que, apesar de suprimir alguns ingredientes e substituir por soja o camarão, este prato é absolutamente delicioso. E é claro que você pode trabalhar com o tradicional azeite de dendê. Opto pelo de oliva para suavizar o vatapá, pois a suavidade é uma proposta da cozinha aqui de casa e, mais uma vez, lhe garanto sem medo que fica boooooom demais da conta.

                          

Se acabe. Tenha medo não.
Beijo apimentado desta Ceronha.
AXÉ!

P.S.: No próximo episódio, um bolo de banana com canela que Carlos Drummond de Andrade veio saborear comigo, enquanto me dava uns conselhos. Aproveito para pedir a quem seja, nunca usar o santo nome do Carlos em vão.

domingo, 6 de julho de 2014

Como Água para Chocolate - receitas em verso e prosa


CAPÍTULO VI

Bulim

"A Mamãe não podia ver semente que já ia plantando e distribuindo as mudas."
(Tia Zélia, sobre a Vovó.)

Abri esta série fazendo três recortes da minha trajetória como "cozinheira" que justificavam dizer do amor necessariamente empenhado no ato de cozinhar. De outro modo, em tudo na vida, eu não sei, nem me dedico.
A cozinha da minha avó materna foi a primeira referência citada naquela introdução. Viajei até Tamboril para buscar este capítulo. Tia Zélia gentilmente se ofereceu para fazer os tradicionais bulins, tão representativos da culinária tamborilense e muito especialmente da casa da Vovó.


Estou há dias vendo as fotos que fiz, recordando a sensação de meter de novo a mão naquela massa, relembrando as conversas, comendo os que eu trouxe comigo, mas sem conseguir escrever uma linha que fosse até hoje, quando chegou ao fim a minha tolerância para com meu excesso de vaidade. Ora, ora, falar da Vovó é coisa pra mais de livro, e eu insistindo pra ela caber neste humilde post. Pra começar, até onde eu contei estávamos em 19 filhos, 50 netos, 30 bisnetos, 5 tetranetos. Há que ter muita generosidade e disposição para, em companhia do Vovô, é claro, abastecer de pão, coragem, esperança e alegria tão significativa tropa. Nós somos "os Cutes" do Tamboril. "Cutes", como era conhecido meu avô Francisco. Ou simplesmente "os Cute". E "Cute" é raça pra gostar de reunir gente em torno da mesa farta. Como eu dizia no capítulo de abertura, visita naquela casa tem gosto de ser recebida na cozinha e não dou notícia de uma que não tenha perdido o acanhamento diante da oferta. É doce de tudo quanto é especie. O de jerimum com tamarindo que a Vovó fazia era a coisa mais saborosa deste mundo todinho. Me lembro como se fosse agorinha mesmo o cheiro e o gosto das cocadas que eu não conheceria igual longe dali. O feijão, a paçoca, o mungunzá, as pamonhas, as tapiocas, o doce de mamão com coco, o doce de leite inigualável da Tia Zélia... É tanta coisa que eu podia passar o resto da vida escrevendo sobre e ainda deixar a tarefa de herança para os que tenham a decência de não permitir que morra esta vocação da família.
Talvez ainda exista naquela casa um forno microondas empoeirado e enferrujado pelo desuso, posto que ali não abdicamos do modo mais incrível e deliciosamente arcaico de preparar o alimento, e que Tia Zélia mantém vivo em labaredas que aquecem o coração do "Cute" mais distante. Do vasto repertório amplamente praticado e reescrito por minha Tia, elegi os bulins, porque são biscoitinhos de goma que todo tamborilense dá a vida por uma fornada. Os elegi não simplesmente pelo sabor, mas por quanto eles agregam. Eu contei um pouco lá atrás sobre todas as mãos, pequeninas ou não, envolvidas na tarefa. Me ocorre pensar que a coitada da Barbie nunca ia mesmo ter chance comigo, se eu tinha a verdade como brinquedo. O calor, o aroma, o sabor e a condução de minha interessantíssima Avó, hoje e muito justamente função da Tia Zélia. Comer cru, comer quente, comer por muitos dias até que viesse a próxima fornada. Nunca houve castelinho de plástico que me seduzisse diante da nossa legítima fábrica de doces, em casa tão grande, com quintal tão atraente e tudo tão carregado de amor. Até os carões da Vovó, que nunca foi de adular menino. Esta era sem dúvida a sua característica mais divertida e adorável. Dizia tudo o que pensava, a Vó Totonha, sem perder em amor e carisma. Carisma que tou pra ver, viu?
Pois bem, esta é minha Tia Zélia, toda trabalhada na sua touca e digníssimo avental, fazendo questão da propaganda da manteiga do Pajeú. As famílias do Pajeú e tudo quanto produzem são da melhor qualidade.


Li a receita dos bulins escrita por minha tão imensamente querida Tia Nilza, que há quase vinte anos foi viver em outro plano. Emoção e tanto a sua letra me causou.


É bulim de ruma, não tenha preguiça. Junte a meninada e não precisa sofrer demasiado se não dispõe de um forno como este. Vamos botar uma fé no seu forninho brastemp, né? E muita fé na sua disposição pra correr uns quilômetros, porque esta receita passa longe do conceito de ligth. É pecado muito e eu adoro.


Anote: 5 litros de goma (a mesma usada para fazer tapioca, só que seca), 20 ovos, 2 quilos e meio de açúcar (isso mesmo: dois quilos e meio), 1 xícara de chá de manteiga, coco ou queijo à vontade (esses a minha Tia fez com um pratinho de sobremesa de queijo coalho do Pajeú bem raladinho), 1 colher de sopa de fermento em pó. Raspas de 3 limões. Reserve metade da goma que vai se incorporar à receita na hora de dar o ponto e a forma.


Bata os ovos no liquidificador e adicione à outra metade da goma já misturada com o açúcar, o coco (ou o queijo), a manteiga, as raspas de limão e o fermento. Misture muito bem. Deixe descansar por umas três, quatro horas.


Sobre uma mesa limpa, vá jogando a goma seca reservada, para evitar que gude e para dar o ponto do bulim. Um pouco por vez, vá misturando e amassando até que perceba uma certa flatulência na massa. Tenha vergonha não, isso é da vida.



Nesse momento abra a massa com o rolo e corte como nas imagens. Organize-os numa assadeira também polvilhada com a goma, para evitar que grudem no fundo. Repita este procedimento até que toda a massa vire bulim.



Rende muito. Muito mesmo. O tempo no forno é curto. Lamento que você não possa contar com a nossa Tondequinha, especialista em assar bulim. Para minha alegria, uma assadeira passou um pouquinho do ponto. Adoro os mais tostadinhos. Comi por mim e pela prima Helânia, que sentia o cheiro lá em Brasília.


Agora é guardar. Lá ainda se usa para isso uma lata de biscoito Fortaleza que tem pra bem mais de trinta anos.


É tanto que me lembro sobre ser "Cute", sobre a Dona Totonha multiplicando pães e saberes, que agradeço. Agradeço e agradeço. E me encho de uma vontade grande de me espalhar e cantar o tempo. Acho que por isso essa série e esse Caetano Veloso pra terminar. Por hoje. Cantemos:
"De modo que o meu espírito 
Ganhe um brilho definido.
Tempo, tempo, tempo, tempo,
Eu espalhe benefícios.
Tempo, tempo, tempo, tempo..."

Ceronha Pontes

sábado, 5 de julho de 2014

Intervalo II


PELO SABOR DO GESTO

"Eu já toquei o amor pelo sabor do gesto,
Confesso que perdi, me diz quantos se vão?
Paixões passam por mim, amores que têm pressa
Vão se perder em si."
(Zélia Duncan)

Demorando a vir com o próximo capítulo porque fui buscar a receita lá no meu sertão. Ela está assando num forno à lenha que me comove por demais e talvez eu nem encontre o jeito de dizê-la senão pelos convencionalíssimos ingredientes e modo de preparar. Trata-se dos biscoitos citados na introdução da série, super representativos da cozinha da Vovó. Desconfio que nada do que eu componha os fará enxergar a minha Avó tal como foi, como é e será sempre aqui muito dentro de mim, ou, ao contrário, aqui no mais dentro de dentro dela, onde me fiz. Então admiti e assumo agora este segundo intervalo.


Entre a sopa de abóbora do capítulo anterior e o que virá, a viagem até Tamboril passa necessariamente pela capital, Fortaleza. Lá o meu amigo do peito, Rogério Mesquita, tomou conta de mim. Desde me buscar no aeroporto, levar pra jantar com outros amigos e depois pra dormir no conforto e acolhimento de sua casa. Entre os diversos e muitos assuntos, aquele filminho francês que ele me deu de presente porque sabia que eu ia adorar e, adorei: Les Chansons d'Amour. Já o citei outras muitas vezes aqui no blog. Além de falar um monte e apaixonadamente sobre a Chiara Mastroianni (enquanto eu sempre que penso no filme é muito pelo Louis Garrel), Rogério veio me dizer da versão da Zélia Duncan para uma das canções que mais gosto do filme: As-tu déjà aimé. E eu não me canso de ouvir. Sem contar o Fernando Pessoa sempre nos estendendo, outro presentinho da Duncan nesta gravação. Repasso, como cada uma das receitinhas aqui compartilhadas, acreditando absolutamente no valor de servir "o bom da festa de um jeito mais feliz".
Bon appétit.

Ceronha Pontes



"Não me ame tanto, mas me ame por muito tempo". Algo assim.


sábado, 21 de junho de 2014

Como Água para Chocolate - receitas em verso e prosa


CAPÍTULO V

Sopa de abóbora com gorgonzola¹

"Vi um incêndio de girassóis na alma de uma lesma".
Manoel de Barros




Tem esperança na alturas, embora lhe doa voar. Caminhando é que enfrenta o desafio. Cansaço, vertigem. Pausa. Demora-se no que só é possível encontrar naquela montanha. Enormes animais extintos, por exemplo. Desmaia.
Quanto tempo? Porque agora sente tudo em futuro do pretérito.
Acordaria numa casa muito velha cravada numa clareira por onde se derrama uma lua bem gorda. Ouviria risos. Fantasmas. Por certo algum lhe havia resgatado. Caminharia até uma janela entreaberta, de onde enxergaria o jardim adormecido. Estaria em paz.
Exploraria em seguida todos os cômodos e reconheceria perfumes, livros, quadros. Não há retratos. Perseguiria o cheiro bom que vem de repente da cozinha. Sobre a mesa, "um incêndio de girassóis", pensaria em verso emprestado de um poeta seu amigo. Teria agora certeza de ter estado ali. Encontraria eco seu riso mais feliz, enquanto recitaria, como se poesia, um a um, cheios de vida, os ingredientes e o modo de combiná-los.
Não guardaria nomes de abóboras, só as cores. E precisaria da mais amarela. Lhe bastariam quinhentos gramas. Temperos de outras cores. Cebola, alho, alho poró, pimentão, tomate, salsinha. Não exageraria no sal.


Sem nada de gordura, cobriria com água fervente e deixaria cozinhar por tempo suficiente para visitar outras falas do mesmo Manoel que há pouco lhe serviu ao espanto. Saberia de si tal como está escrito:
"Sei de conchas em mim ouvindo hinos.
estou em vão".
Se perderia no livro verde com o nome do autor em garrafais azuis. Até que se lembraria do prazer em andamento.  Suspenderia o fogo. É preciso saber, no meio da brincadeira, deixar esfriar um pouco. O faria. Processaria. Transformaria em sopa cremosa da cor de um girassol ao acordar. Levaria ao fogo outra vez. Ao ferver, apagaria e acrescentaria cerca de uma colher de sopa de creme de leite para cada quatro ou cinco conchas e, já no prato, queijo gorgonzola à vontade. Serviria com pão australiano coberto com leve camada de ghee, para ensolarar ainda mais a noite pretérita, que desde quando foi, presenteia futuros e mais futuros com a mais cara inspiração.



Seja feliz.

Ceronha Pontes

P.S.: Canção que cantaria para este girassol? Esta. Embora triste.

¹ Este prato quem me apresentou foi a Laura, amiga da Shu. Jantaríamos em sua casa em Campinas. Quando estávamos no meio do caminho, ela telefonou pro Dé (marido da Shu e meu irmão) e pediu para que ele parasse em algum supermercado para comprar o tal queijo. Eu não podia suportar sequer o cheiro do danado. E fiquei tentando desde aquela hora encontrar um meio de evitar o prato sem ser desagradável. Não teve jeito. Acabei tomando a sopa e me apaixonando pelo gorgonzola.