CAPÍTULO VI
Bulim
"A Mamãe não podia ver semente que já ia plantando e distribuindo as mudas."
(Tia Zélia, sobre a Vovó.)
Abri esta série fazendo três recortes da minha trajetória como "cozinheira" que justificavam dizer do amor necessariamente empenhado no ato de cozinhar. De outro modo, em tudo na vida, eu não sei, nem me dedico.
A cozinha da minha avó materna foi a primeira referência citada naquela introdução. Viajei até Tamboril para buscar este capítulo. Tia Zélia gentilmente se ofereceu para fazer os tradicionais bulins, tão representativos da culinária tamborilense e muito especialmente da casa da Vovó.
Estou há dias vendo as fotos que fiz, recordando a sensação de meter de novo a mão naquela massa, relembrando as conversas, comendo os que eu trouxe comigo, mas sem conseguir escrever uma linha que fosse até hoje, quando chegou ao fim a minha tolerância para com meu excesso de vaidade. Ora, ora, falar da Vovó é coisa pra mais de livro, e eu insistindo pra ela caber neste humilde post. Pra começar, até onde eu contei estávamos em 19 filhos, 50 netos, 30 bisnetos, 5 tetranetos. Há que ter muita generosidade e disposição para, em companhia do Vovô, é claro, abastecer de pão, coragem, esperança e alegria tão significativa tropa. Nós somos "os Cutes" do Tamboril. "Cutes", como era conhecido meu avô Francisco. Ou simplesmente "os Cute". E "Cute" é raça pra gostar de reunir gente em torno da mesa farta. Como eu dizia no capítulo de abertura, visita naquela casa tem gosto de ser recebida na cozinha e não dou notícia de uma que não tenha perdido o acanhamento diante da oferta. É doce de tudo quanto é especie. O de jerimum com tamarindo que a Vovó fazia era a coisa mais saborosa deste mundo todinho. Me lembro como se fosse agorinha mesmo o cheiro e o gosto das cocadas que eu não conheceria igual longe dali. O feijão, a paçoca, o mungunzá, as pamonhas, as tapiocas, o doce de mamão com coco, o doce de leite inigualável da Tia Zélia... É tanta coisa que eu podia passar o resto da vida escrevendo sobre e ainda deixar a tarefa de herança para os que tenham a decência de não permitir que morra esta vocação da família.
Talvez ainda exista naquela casa um forno microondas empoeirado e enferrujado pelo desuso, posto que ali não abdicamos do modo mais incrível e deliciosamente arcaico de preparar o alimento, e que Tia Zélia mantém vivo em labaredas que aquecem o coração do "Cute" mais distante. Do vasto repertório amplamente praticado e reescrito por minha Tia, elegi os bulins, porque são biscoitinhos de goma que todo tamborilense dá a vida por uma fornada. Os elegi não simplesmente pelo sabor, mas por quanto eles agregam. Eu contei um pouco lá atrás sobre todas as mãos, pequeninas ou não, envolvidas na tarefa. Me ocorre pensar que a coitada da Barbie nunca ia mesmo ter chance comigo, se eu tinha a verdade como brinquedo. O calor, o aroma, o sabor e a condução de minha interessantíssima Avó, hoje e muito justamente função da Tia Zélia. Comer cru, comer quente, comer por muitos dias até que viesse a próxima fornada. Nunca houve castelinho de plástico que me seduzisse diante da nossa legítima fábrica de doces, em casa tão grande, com quintal tão atraente e tudo tão carregado de amor. Até os carões da Vovó, que nunca foi de adular menino. Esta era sem dúvida a sua característica mais divertida e adorável. Dizia tudo o que pensava, a Vó Totonha, sem perder em amor e carisma. Carisma que tou pra ver, viu?
Pois bem, esta é minha Tia Zélia, toda trabalhada na sua touca e digníssimo avental, fazendo questão da propaganda da manteiga do Pajeú. As famílias do Pajeú e tudo quanto produzem são da melhor qualidade.
Li a receita dos bulins escrita por minha tão imensamente querida Tia Nilza, que há quase vinte anos foi viver em outro plano. Emoção e tanto a sua letra me causou.
É bulim de ruma, não tenha preguiça. Junte a meninada e não precisa sofrer demasiado se não dispõe de um forno como este. Vamos botar uma fé no seu
forninho brastemp, né? E muita fé na sua disposição pra correr uns quilômetros, porque esta receita passa longe do conceito de ligth. É pecado muito e eu adoro.
Anote: 5 litros de goma (a mesma usada para fazer tapioca, só que seca), 20 ovos, 2 quilos e meio de açúcar (isso mesmo: dois quilos e meio), 1 xícara de chá de manteiga, coco ou queijo à vontade (esses a minha Tia fez com um pratinho de sobremesa de queijo coalho do Pajeú bem raladinho), 1 colher de sopa de fermento em pó. Raspas de 3 limões. Reserve metade da goma que vai se incorporar à receita na hora de dar o ponto e a forma.
Bata os ovos no liquidificador e adicione à outra metade da goma já misturada com o açúcar, o coco (ou o queijo), a manteiga, as raspas de limão e o fermento. Misture muito bem. Deixe descansar por umas três, quatro horas.
Sobre uma mesa limpa, vá jogando a goma seca reservada, para evitar que gude e para dar o ponto do bulim. Um pouco por vez, vá misturando e amassando até que perceba uma certa flatulência na massa. Tenha vergonha não, isso é da vida.
Nesse momento abra a massa com o rolo e corte como nas imagens. Organize-os numa assadeira também polvilhada com a goma, para evitar que grudem no fundo. Repita este procedimento até que toda a massa vire bulim.
Rende muito. Muito mesmo. O tempo no forno é curto. Lamento que você não possa contar com a nossa Tondequinha, especialista em assar bulim. Para minha alegria, uma assadeira passou um pouquinho do ponto. Adoro os mais tostadinhos. Comi por mim e pela prima Helânia, que sentia o cheiro lá em Brasília.
Agora é guardar. Lá ainda se usa para isso uma lata de biscoito Fortaleza que tem pra bem mais de trinta anos.
É tanto que me lembro sobre ser "Cute", sobre a Dona Totonha multiplicando pães e saberes, que agradeço. Agradeço e agradeço. E me encho de uma vontade grande de me espalhar e cantar o tempo. Acho que por isso essa série e esse
Caetano Veloso pra terminar. Por hoje. Cantemos:
"De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido.
Tempo, tempo, tempo, tempo,
Eu espalhe benefícios.
Tempo, tempo, tempo, tempo..."
Ceronha Pontes