quinta-feira, 28 de agosto de 2014
O BAILE
CAPÍTULO III
Dançando com Marie
Ela metida num vestidinho branco de estampa floral, sapatos vermelhos (já usei sapatos vermelhos por sua causa), cabelos presos como os de sua mãe. Seu batom também é vermelho. Eu não uso batom vermelho porque mata meus olhos, cada vez menores dentro dessas molduras roxas. Já Marie, não tem batom nem nada no mundo que apague seus olhos. Eles contam histórias de muito longe em seu brilho e lindeza.
Hoje temos música ao vivo. A uma hora dessas o salão já esvaziou um pouco. Sobretudo, Jacques Desmoulins deixou o baile. Neste momento, e não creio que por coincidência, a banda toca Elisa¹.
Marie gira muito, está me deixando tonta. Eu queria ter seguido Jacques, era com ele que eu deveria dançar neste capítulo, mas também não resisto a Marie. Ela sai correndo, voa pela escadaria. Já vi isto acontecer antes. Está sem ar. Tem falta de ar quando suas perdas se impõem. Corro atrás dela para o caso de, desesperada, se atirar no mar. Há tubarões por aqui e Marie não é o tipo que obedece aos avisos de perigo. Mas ela cai na areia. Não se levanta mais. Me aproximo cuidadosa. Sento ao seu lado. Ela não me olha, mas sinto sua permissão para ficar. Vai recuperando o fôlego aos poucos. Sou direta.
- Jacques se assustou com a semelhança entre você e Elisa.
Ela olha o mar. Seus olhos têm a cor do mar e escorrem para ele. Acho tão bonito vê-la chorar. Parece cruel, mas acho.
- Não vim ao baile por sua causa, apesar de ter ficado a noite inteira hipnotizada por sua figura. Vim por Jacques. Compreendo bem a perplexidade de Jacques, a decepção, o medo diante de uma Elisa até então desconhecida. É duro descobrir-se amando uma estranha, Marie. Alguém que você jurava ser sua cúmplice, dona de seus segredos. Jacques não é o tipo do homem cheio de melindres moralistas, imagine. É um artista. Seu olhar, seu coração, sua música, compreendem e comportam o humano. O que ele não foi capaz de suportar foi se ver de repente acusado de coisas que desconhecia. Foi não reconhecer Elisa. Foi desejar aquela estranha, aquela mulher que ele não sabia mais do que era capaz. Para mim é mais fácil compreender Elisa, não julgá-la, nem correr para bem longe como ele fez. Mas ela não é a minha mulher, Marie. Me sentisse desse modo enganada, ah, sou muito capaz de fugir como ele fez. De nunca mais saber o que fazer com Elisa em mim.
Assim, de fora, posso observar e compreender as fraquezas de Elisa. Do mesmo modo posso olhar para Jacques com compaixão e ternura. Te adianto que tu poderás em breve ver tudo melhor, aliviando os pesares. Jacques não podia adivinhar que ela estava grávida. E tanto naquele momento como agora, quem pode afirmar que seja seu pai? Ele está tão atormentado quanto você. Eu também fico confusa ao vê-los. Me apego à certeza de que tu, quando livre desse ódio imenso vais, enfim, ser feliz. É injusto não ser feliz, Marie. Se não estamos, é preciso encontrar os meios para. Agora que o conheces, já podes perdoá-lo. Nunca houve exatamente razão para condená-lo. Se ele foi fraco, Elisa, e eu lamento, foi mais. Se ela não resistiu ao desamparo, ele até hoje padece bêbado e desgraçado.
Marie nem precisava que eu lhe dissesse essas coisas. Já havia constatado desde quando não conseguiu atirar em Jacques. Todo o resto foi esforço vão para não admitir. Eu é que me dou conta de que falo para mim. Quando olho para Jacques, penso na sua dor, na sua fuga, me ponho a refletir sobre as minhas incapacidades, sobre a minha covardia. E eu sequer consigo tomar um bendito de um porre. Dançar, talvez. Escrever bobagens...
Marie tira os sapatos, levanta-se e segue andando sem pressa pela areia. Penso em Solange, porque agora mesmo me sinto como ela quando entendeu que não estaria outra vez na vida com Marie. Penso em mim e naqueles que talvez não reveja, mas que me são tão especiais e tão definitivos.
Ainda é possível avistar Marie. Ela começa a dançar enquanto avança em direção a algum lugar onde estar com Jacques, é certo. Eu não consigo me levantar, mas as minhas mãos dançam tímidas, adivinhando a canção (tão óbvia!) pelo modo e o ritmo com que Marie se move. Ela desapareceu. Elisa (a canção) se agiganta no meu peito. Quase surda, escorro para o mar à minha frente.
Ceronha Pontes
Nota: ¹ Élisa é um filme francês de 1995, dirigido por Jean Becker e estrelado pela minha musa Vanessa Paradis e pelo imenso Gérard Depardieu. O filme é uma homenagem à canção homônima de Serge Gainsbourg. Tem também no elenco a Clotilde Courau como Solange.
Gosto de olhar para Jacques, gosto de usar seus olhos para ver e repensar escolhas.
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