sexta-feira, 1 de agosto de 2014

O BAILE


CAPÍTULO I

Dançando com Timoteo

"Gli amori sono quasi tutti uguali
La differenza adesso falla tu..."
(Gli amori - Toto Cotugno)



Aquele ali no balcão, ainda de jaleco, é o Timoteo. Exausto. Aliviado, sobretudo. Sua filha Angela acaba de renascer, depois de um acidente. Alfredo, o colega que abriu a cabeça da menina, não a deixaria morrer, todos esperavam. Rezei. A mãe está lá com ela, prometendo desfazer-se da cabeleira também, em solidariedade. Claro que o fará.


Senti recentemente mais uma vez o gosto amargo da morte. Sei a exata agonia de Timo. Sei o quão pequeno ele se encontra neste momento. Angela sobreviveu sim, e isto é tanto! Mas nada neste mundo, nesta vida, tornará mais amena a falta de Italia, o fato de não ter conseguido evitar aquele aborto infeliz e suas trágicas consequências.
Opa, Timo pediu vodca. A última vez que o vi se entupindo de vodca, resultou na violência contra Italia. Temo que ele abandone o bom senso e se repita. Duvido, no entanto, que haja outra como ela, e que um ato desta natureza possa desdobrar-se novamente em amor. Aquilo foi único. Devo me aproximar.


Chego bem perto, peço uma água natural e sem gás. Ele me reconhece, diz que já me flagrou várias vezes espionando-os. Confirmo que tenho estado sempre à espreita, desde que os conheci. Que sei detalhes de todas aquelas relações. Que amei Italia desde o primeiro instante. Desarma-se quando digo que a amei porque vejo a vida de um ângulo muito próximo de onde os olhos dele. Então encosta sua garrafinha de bebida na minha taça de água, me surpreendendo com um brinde. A quê? Pergunto. Ele silencia. Recordo os olhos mortos de Italia apontando para o além. Ergo a taça em silêncio e bebo.


Quer saber se lembro de Elsa. Digo-lhe que Elsa, sua esposa, não é uma mulher de quem se possa esquecer. Que enquanto caminhava para o mar metida naquele maiô preto que deixava à mostra a sua estupenda brancura, combinada com uma farta e bela cabeleira dourada, emoldurando aqueles olhos fora do comum, ah, segui-a! Até certo ponto, é claro, pois a lembrança de Italia põe Elsa e quem mais num segundo plano. Disparo:
-Não é possível que Elsa não tenha visto a tua confissão escrita enormemente na areia, Timo. Ela não se importou, eu penso. Elsa não é mulher de se importar  com nada que não julgue ser uma ameaça a ela própria.



Como eu tive coragem? É melhor me controlar para evitar falar demais sobre Manlio. Manlio entra na história quando a vaidade de Elsa finalmente permite que ela perceba o risco. Ela só não seria capaz de imaginar Italia. Nem Manlio, colega e melhor amigo de Timo, seria capaz de imaginar que por alguém como Italia, ele tenha sido capaz de interromper a decolagem daquele avião por exemplo.
- Timo, me sinto privilegiada por enxergar Italia. Alcançar-lhe a beleza. De me comover com ela. Se não comove, não é belo, não é assim?  É por isso que antes de Elsa, linda dentro do maiô, entrar no mar, mudamos a direção do olhar, perscrutando aquela que nos causa espanto, que nos faz confrontar nossa própria miudeza. Pequenos, eu e tu, nos entregamos à Italia. 



Explico-lhe que ela sabe que estou aqui. Que elevei meus pensamentos e ela me consentiu. Sim, acho justo buscar o consentimento daqueles com quem me envolvo. Lealdade. Do mesmo modo, e isso eu contei a vocês dois posts atrás, que eu não sujeitaria Timoteo à visão suspeita de nós duas (Italia e eu). Ele quase ri, seguro. Recuso a vodca que me oferece. Agora ele abaixa a cabeça e chora cansado. Aquele choro de quem sabe que já está tudo bem e, em companhia confiável, esvazia o corpo da dor e do medo que abrigou enquanto Angela estava em risco na sala de cirurgia. Chora e chora. Não o mesmo choro desesperado que o levou a quebrar tudo naquele hospital de fim de mundo onde morreu Italia. Mas o choro do alívio. Eu também choro.


Peço outra água. Esta ele divide comigo.
Conto-lhe sobre o filho que perdi há uns poucos anos, ele fica nervoso. Acalma-te, eu digo, explicando que, ao contrário de Italia, que tomou ela mesma a decisão por não se julgar capaz de ser uma boa mãe (eu e ele sabemos bem o motivo de ela pensar assim), quem decidiu que eu não seria boa mãe foi meu próprio filho. Em menos de seis semanas me abandonou. Foi-se embora sangrando e doendo como eu não poderei esquecer. Choro mais. Dessa perda e surpresa má ele também entende, posto que chegou tarde demais e daí seguiram os trágicos acontecimentos de sua vida. Por tudo isso quis me abraçar e então eu disse espontaneamente a frase que aguardei uma vida o direito e o momento certo de:
-Non ti muovere.
Ele se espanta e obedece. Continuo:


- Non ti muovere¹. Quando sinto dor, preciso estar solta na imensidão. Não se trata da arrogância de recusar ajuda. Esta eu também tenho, mas não é o caso agora. É necessidade de dar espaço pro ar que me falta encontrar-me os pulmões. Só por isso. Conheço criaturas semelhantes a Italia. Em carne, Timo. Sei o mundo de coisas raras e fundas que são capazes de desvendar para nós. E também te entendo os desatinos, porque padeço de semelhante humanidade. Por isso estou sempre à espreita, te observando de longe, ou de tão perto que mal podes supor. Porque tu me ajudas no entendimento de mim mesma. O quanto possível, já que a gente passa a vida pelejando e não se aprende a si mesma inteiramente. Isso tudo termina sempre com uma interrupção. Findamos incompletos. Cheios de ausências. As tuas ausências me doem, pela similaridade com as minhas. Mas eu não devo te importunar mais. Elsa está precisando de apoio, e é certo que prefere tua companhia à de Manlio. Ou não tinha feito tudo o que fez. 
Outra vez ele se espanta com minha observação, mas preferimos não desenvolver a conversa, optando voluntariamente nós mesmos pela incompletude. Digo-lhe que gostaria de me despedir dançando. Ele se dirige à vitrola, põe uma ficha e me surpreende. Eu esperava ouvir Un senso², mas ele prefere me dizer outra coisa. Agora sim, permito o contato. Rostos colados, cúmplices, úmidos e salgados, dançamos Gli amori³.

Ceronha Pontes

Notas:
¹ Non ti muovere, filme de Sergio Castellitto, inspirado no romance homônimo de sua esposa Margaret Mazzantini, com ele próprio no papel de Timoteo. Penélope Cruz como Italia, Claudia Gerini como Elsa, Elena Perino como Angela, Marco Giallini como Manlio, Pietro de Silva como Alfredo, entre outros. Adoro o filme e realmente me encontro no olhar de Timoteo.
² Música de Vasco Rossi que marca muito o filme.
³ Canção de Toto Cutugno que toca no carro quando Timo e Italia pegam a estrada tentando ainda a felicidade juntos. A vida, porém, tinha outros planos.

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