segunda-feira, 21 de julho de 2014

Como Água para Chocolate - receitas em verso e prosa


CAPÍTULO X (último)

Doce de leite com rapadura
(geleia geral)

Outro dia um querido, verdadeiro e espetacular chef, com quem estive no terceiro intervalo da série, me lembrou que eu sou atriz. Pois reconheço em mim o dom e o empenho de anos e não estou abdicando do ofício, mas, penso que seja saudável admitir quando a coisa (qualquer que seja) não está te fazendo feliz, e usufruir do direito de explorar outras ações que te asseguram do bem que tu podes. Pois é tanto que não quero como é, que precisei inventar esta série. Cozinhar implica o amor. E amor AINDA é aquela coisa toda. Revisitei minhas memórias, experimentei, amei de novo e com renovada intensidade cada criatura em quem pensei enquanto cozinhava. Incorporei tudo e todos que pintaram nesses dias todos. Não neguei nada. Transformei tudo. Minhas revoltas e rancores não foram vencidos, devo lhe dizer, mas são obrigados a dividir o espaço com melhores sentimentos meus, e essa espécie de compensação me ajuda a levar.
Sobre acolher o que se aproxima, em ser e sentimento, tenho andado com o Torquato Neto me doendo na garganta. Torquato, confesso, demorou a me afetar. Ele me fez companhia por tanto tempo ali pelos dezenove, em livro emprestado de um professor "maldito", mas eu consegui, com toda a minha estreiteza juvenil, que ele passasse batido, na época. Rapaz, eu que já era "amiga" do Drummond e do Manuel Bandeira, tinha algum impedimento com relação ao Torquato e os de sua natureza, que só no fim dos anos 90 eu entenderia, mas não explicarei aqui por uma questão de pudor e segurança também, eu acho. Ui! O fato é que tenho estado com ele e minha carne dói.  Ou antes me dói a carne, açoitada pelo espírito da tristeza funda, e por isso Torquato se achegou. Sei que reli seus versos, ouvi canções, estive obsessivamente atracada com suas últimas palavras e, quando estava já sem ar, converti meu choro em doce de leite com rapadura, temperado com um pouco de cravo. Ê, ê, Seo Minino, "a alegria é a prova dos nove e a tristeza é teu porto seguro".
Eu encerraria a série com uma receita que tenho a ousadia de pensar que me traduz. Cheguei a produzir e fotografar a iguaria, mas tive que mudar o rumo das panelas e atender à minha intuição. Olhar de novo e quantas vezes para o fogão à lenha da casa da Vovó. Não se trata de apegar-me ao passado por desacreditar na sempre possível felicidade futura, mas de não esquecer do que sou feita e desde onde me desdobro. Liguei para a Tia Zélia pedindo as medidas. Por coincidência ela e Tondeca estavam com a panela no fogo justamente preparando esta sobremesa, e o Primo Ed imediatamente me enviou umas duzentas fotos inspiradoras. E você já pode facilmente identificar qual a minha cozinha e a cozinha de lá.


Minha Tia falou da má qualidade das rapaduras atuais, motivo pelo qual já não alcançamos a mesma textura de outrora. Na minha infância o doce de leite com rapadura resultava deliciosamente caroçudo como uma ambrosia. "Hoje as rapaduras não talham mais o leite, e o doce fica liso como se fosse com açúcar", dizia a Tia Zélia. Não importa, eu necessitava reencontrar ao menos o velho sabor e poder dividir com o jovem poeta que me acompanha, alguma esperança.


Ela me recomendou dois litros de leite acrescidos de 250g de rapadura (bem pretinha) e 250g de açúcar (usei o demerara). Adicionei por minha conta suco de 1/4 de limão e quatro cravos machucados.
Ao fogo. Quando levanta fervura, abaixamos o chama.


Só bem lá adiante, quando começa a reduzir e apurar a cor, é que mexemos de vez em quando para evitar que queime no fundo da panela.


Em dado momento, mais perto do fim, precisamos seguir mexendo sem parar, até dar o ponto, que é quando o doce vai desgrudando do fundo, como se fosse brigadeiro.


O meu ficou mais escurinho que o de Tia Zélia e Tondeca. Certamente pelo uso do demerara. Também a textura do meu ficou uns passos a mais em direção à do doce da minha infância. Pensamos que por causa do limão.


Aquele cheiro e sabor me trouxeram breve, mas intenso contentamento, que pude partilhar com Torquato e pensar junto com ele sobre toda a sabedoria e prazer oferecidos pela simplicidade.


Sua figura foi aos poucos se dissipando, de modo que agora sua cara presença é apenas pressentida.Um nozinho no peito, um choro que não se completa. E aquela imensa revolta por tudo de ruim que se instalou desde a partida de meu adorado Pai, me mata hoje menos que ontem. Não sei como será amanhã, mas é saudável lembrar que posso controlar o mal com a doçura que me habita. Doçura nem sempre manifesta, é verdade, mas, legítima. Com ela não jogo nem engano. Pratico. Partilho. E agradeço a quem a desperta. Como a você, Torquato imenso, que tanta comoção me causa. Te dedico, querido poeta, aquela tua A coisa mais linda que existe. E do Gil. Então...
"Na cidade em que me perco,
Na praça em que me resolvo,
Na noite da noite escura,
É lindo ter junto ao corpo
Ternura de um corpo manso
Na noite da noite escura."

Um beijo em cada um que provar disso tudo, com amor,

Ceronha Pontes

P.S.: Em breve iniciaremos uma nova série, cujo nome ainda não foi definido, mas será um imenso salão onde dançarei com pessoas e personagens que me ajudam a ser. Para o episódio de estreia, estarei de rosto colado com Timóteo (Non ti muovere), trocando confidências. Até.

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