Com o coração
espremido, vestindo o preto de um luto romântico fora de tempo, caminhei da
minha casa até o Teatro Arraial Ariano Suassuna ameaçada pelo céu, que tem
estado por um triz. Por que não desaba de uma vez?
Entrei no
teatro para ser imediatamente enredada por uma imensa lua negra suspensa no
palco. Não havia rota de fuga. A noite grande onde habita Antônio Maria já nos
absorvia a todos: os infelizes e os outros. Todos imersos numa saudade do
Recife, como se não estivéssemos ali, em plena Rua da Aurora, com o Capibaribe
correndo seus mistérios. Era Dalva Torres chegando com Frevo nº 1.
Nesses tempos em que o mau gosto tem o trono, Dalva é estrela
rara reluzindo resistência. Ela, que ao lado de Araci de Almeida, Nora Ney e
Elizeth Cardoso, tem lugar na história como grande intérprete deste compositor cujas
canções são possuídas de amores naufragados.
Não é só a beleza da voz, porque beleza para ser beleza mesmo
há que arranhar, atravessar a pele, a carne, o osso até o tutano. Libertar do
peito a alegria genuína, mas também a dor profunda e cruel que é o preço de se
amar demais. A beleza molha e salga o riso. É disso que Dalva é capaz com sua,
agora sim, linda voz, seu humor, sua propriedade do ofício. A música se rende a
Dalva, que lhe toma com zelo e uma alegria menina.
AO AMOR, ONDE O AMOR FOI DEMAIS, o espetáculo, era Antônio
Maria cantado de muito fundo e atirado sobre nós, expondo qualquer amor falido
e despedaçado sob a máscara. Vergonha, meu Deus! Antônio Maria, por Dalva Torres,
nos arranca a máscara. Sofri. Sofri mesmo. Quase grito que também eu “nunca
mais vou fazer o que o meu coração mandar”. Mas já estava lá, no centro do
palco, surgido de dentro da escuridão tão breve que mágica, quando o teatro por
um momento foi todo uma lua negra, o Xico de Assis, numa interpretação que me
fez silêncio. Era como o próprio Antônio Maria agonizando de amor para o nosso
delírio. Eu, toda água e sal, escorrendo na primeira fila.
Ah, que noite tão grande, acentuando meu luto, mas
revolvendo-me a alegria e me reconstruindo também, porque o belo tem esse
poder, ainda que doa.
Caca Barreto, Aristide Rosa, Tomás Melo, Maurício Cézar e Alexandre Rodrigues (Copinha), músicos de inequívoco talento, são também de uma elegância pouco usual nesses
tempos em que, repito, o mau gosto tem o trono. Todos muito responsáveis pelo
êxito do trabalho e a grandeza do encontro. Um trabalho orquestrado, digo,
dirigido por Gonzaga Leal, com a sensibilidade e a competência aflita de quem
se apodera do caminho, mas o sabe longo, muito longo.
Uma noite rara, linda. Passados alguns dias acredito que o
céu não tenha desabado em respeito a isso.
Felicito ainda o Jorge Féo, produtor, cuja participação no
processo é também determinante, e a Natalie Revorêdo, iluminadora ou, melhor
dizendo, encantadora.
Bravíssimos!
Ceronha Pontes
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