domingo, 4 de setembro de 2016

LUA NEGRA


Com o coração espremido, vestindo o preto de um luto romântico fora de tempo, caminhei da minha casa até o Teatro Arraial Ariano Suassuna ameaçada pelo céu, que tem estado por um triz. Por que não desaba de uma vez?
Entrei no teatro para ser imediatamente enredada por uma imensa lua negra suspensa no palco. Não havia rota de fuga. A noite grande onde habita Antônio Maria já nos absorvia a todos: os infelizes e os outros. Todos imersos numa saudade do Recife, como se não estivéssemos ali, em plena Rua da Aurora, com o Capibaribe correndo seus mistérios. Era Dalva Torres chegando com Frevo nº 1.
Nesses tempos em que o mau gosto tem o trono, Dalva é estrela rara reluzindo resistência. Ela, que ao lado de Araci de Almeida, Nora Ney e Elizeth Cardoso, tem lugar na história como grande intérprete deste compositor cujas canções são possuídas de amores naufragados.
Não é só a beleza da voz, porque beleza para ser beleza mesmo há que arranhar, atravessar a pele, a carne, o osso até o tutano. Libertar do peito a alegria genuína, mas também a dor profunda e cruel que é o preço de se amar demais. A beleza molha e salga o riso. É disso que Dalva é capaz com sua, agora sim, linda voz, seu humor, sua propriedade do ofício. A música se rende a Dalva, que lhe toma com zelo e uma alegria menina.
AO AMOR, ONDE O AMOR FOI DEMAIS, o espetáculo, era Antônio Maria cantado de muito fundo e atirado sobre nós, expondo qualquer amor falido e despedaçado sob a máscara. Vergonha, meu Deus! Antônio Maria, por Dalva Torres, nos arranca a máscara. Sofri. Sofri mesmo. Quase grito que também eu “nunca mais vou fazer o que o meu coração mandar”. Mas já estava lá, no centro do palco, surgido de dentro da escuridão tão breve que mágica, quando o teatro por um momento foi todo uma lua negra, o Xico de Assis, numa interpretação que me fez silêncio. Era como o próprio Antônio Maria agonizando de amor para o nosso delírio. Eu, toda água e sal, escorrendo na primeira fila.
Ah, que noite tão grande, acentuando meu luto, mas revolvendo-me a alegria e me reconstruindo também, porque o belo tem esse poder, ainda que doa.
Caca Barreto, Aristide Rosa, Tomás Melo, Maurício Cézar e Alexandre Rodrigues (Copinha), músicos de inequívoco talento, são também de uma elegância pouco usual nesses tempos em que, repito, o mau gosto tem o trono. Todos muito responsáveis pelo êxito do trabalho e a grandeza do encontro. Um trabalho orquestrado, digo, dirigido por Gonzaga Leal, com a sensibilidade e a competência aflita de quem se apodera do caminho, mas o sabe longo, muito longo.
Uma noite rara, linda. Passados alguns dias acredito que o céu não tenha desabado em respeito a isso.
Felicito ainda o Jorge Féo, produtor, cuja participação no processo é também determinante, e a Natalie Revorêdo, iluminadora ou, melhor dizendo, encantadora.
Bravíssimos!

Ceronha Pontes



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