domingo, 11 de setembro de 2016

FLORENCIA


Ignacio chegou e Florencia atirou-se em seus braços como quem acordasse à beira de um precipício. 
A presença de Ignacio dava a Florencia a sensação de que finalmente os deuses lhe foram clementes. Ele, silencioso e terno, segurou-a longamente, mas de modo que não se sentisse presa. Depois de muito tempo enlaçados se espalharam pela casa em plena conexão. Um fio raro sempre ligou um ao outro. Eles nunca souberam o nome disso. Em verdade não é uma preocupação.
Ela corre finalizar a massa enquanto ele, já no quarto, adivinha um cinzeiro sufocado na mesinha de cabeceira, sob Clarices, diários de Anaïs e ainda o Rubem Fonseca com aquele seu “E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto”. Ignacio pegou o cinzeiro metendo a mão sob os livros, que desabaram com o movimento. Os recolhe e antes que pudesse coloca-los sobre a cama desarrumada de Florencia, um poema na contracapa do livro do Rubem lhe chamou a atenção. De avental, colher na boca lambendo o molho bolonhês, Florencia para na porta para não interromper a leitura de Ignacio. Ele termina o poema, ergue a cabeça com um esboço de sorriso lançado à janela escancarada, decidido a ler o livro. Surpreende-se com a presença de Florencia quando ela lhe diz que foi o Álvares de Azevedo na contracapa que a seduziu também. Disse que ele podia leva-lo de presente. Ele abraça o livro com um riso largo, que era seu jeito de agradecer. Florencia lança um olhar breve, mas forte para o diário de Anaïs largado sobre os lençóis e se retira. 
Já na sala Ignacio guarda o livro na mochila de onde tira um pacotinho. Com pequena parte do seu conteúdo prepara um cigarro e vai sentar-se no chão da cozinha, com o cinzeiro entre as pernas. Florencia não fuma, mas brinca atirando-lhe um isqueiro que mora sobre o microondas. 
Quem os ouvisse conversando pensaria se tratar de uma língua inventada por eles e para eles. Que amor, aquele?
Comida pronta, sentaram-se à mesa bem posta na sala, comeram e beberam muito. E ela chorou inteiro um rio longo e riu também, porque Ignacio sabe fazer graça e estava especialmente empenhado nisso aquela noite. Já bêbados, jogaram-se no sofá, um do lado do outro. Ele procurou um filme besta na TV e ela, com a cabeça apoiada no seu ombro, dormiu por uns minutos mais profundamente do que as últimas muitas noites.
Foi quando ele se mostrou sério, mas sempre e absolutamente terno. Fez um carinho no rosto de Florencia, depois ficou imóvel até que ela despertasse. Ainda entorpecida, mas segura do que se passava, ela lhe beijou o rosto e falou meio rouca:
- Você me dá sono, viu? E isso é um grande elogio que lhe faço.
Ele riu e disse que agora já podia partir. Desejou que a luz de um outro dia a compensasse por todas as dores. 
Meio trôpega, Florencia acompanhou Ignacio até a porta onde se deram outro demorado abraço. Ela jura tê-lo visto voar depois disso. Deve ter sido o vinho. Entrou, fechou a porta e quando se voltou para a casa novamente, correu-lhe um choro grande outra vez. Ela gritava em silêncio afogado:
- Ignacio, eu ainda sinto essa vontade de morte. 
Era tão insuportável que Florencia desmaiou no meio da sala. Sozinha.
Já vi isso acontecer com Angie. Florência ressuscitará. Algum dia, desses menos esperados, ressuscitará. Um anjo me garantiu que sim. Bem, eu não acredito em anjos, mas que eles existem...
Ceronha Pontes
Recife, 11 de setembro de 2016
Extras: 
¹ Para quem quiser saber de Angie, basta um clik.
http://ceronhapontes.blogspot.com.br/2010/07/angie.html
²E sinto vontade de também iustrar o post com Alice cantando seu avô Caymmi.
https://www.youtube.com/watch?v=NH_sxoIpz8M



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