terça-feira, 29 de julho de 2014

Na paz



Parou o coração do Tio Eron. O meu disparou.
Cecé


segunda-feira, 28 de julho de 2014

Demora



É Timoteo entrando no salão. Tenho vontade súbita de correr até lá, mas não posso com seu coração exausto neste momento, também o meu anda mal acomodado na garganta. Tão logo me recomponha lhe ofereço algum descanso. Depois do sofrido renascimento de Ângela, ele vai precisar. Itália por certo não ficará magoada por eu estender a mão a ele. Sabe que eu não arriscaria. Do mesmo modo eu também não seria desleal com Timoteo, sujeitando-o a uma visão suspeita de nós duas. Nunca.
Por enquanto me debruço sobre a obra da Hilda Hilst¹. Sou o seu Ruiska e moro no seu Fluxo-Floema. E já é atividade suficiente para um coração esmagado por uma agonia recorrente que vem do meu sertão. Que tem o tamanho do meu sertão. E queima, como o sol de lá. Quem bem soubesse não cometesse a sandice de confundir-me a tormenta com dor de amor. Eu bem gostaria. São bonitas as dores de amor. Até quando resultam trágicas. Quem bem soubesse, ficasse pianinho, pianinho. Não acrescentasse ao que já me atrapalha tanto na construção deste "porco com vontade de ter asas".
Quando ele finalmente voar, Timoteo, me aproximo, me embriago contigo, te chamo pra dançar. E iniciaremos a série O Baile, na qual dançarei e trocarei confidências com criaturas (da realidade e da ficção) com as quais me identifico. Criaturas que me comovem e me ajudam a ser. O Baile, tal e qual Como Água para Chocolate, tem nome abusado e de filme que me inspira. Com a licença agora do Ettore Scola.

Ceronha Pontes

¹ Trabalhando na Mostra Hilda Hilst - prosa e poesia, que acontece neste 29 e 30 de julho de 2014, lá no Café Castro Alves. Rua Capitão Lima, 280, Santo Amaro, Recife-PE. Sempre às 20h.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Como Água para Chocolate - receitas em verso e prosa


CAPÍTULO X (último)

Doce de leite com rapadura
(geleia geral)

Outro dia um querido, verdadeiro e espetacular chef, com quem estive no terceiro intervalo da série, me lembrou que eu sou atriz. Pois reconheço em mim o dom e o empenho de anos e não estou abdicando do ofício, mas, penso que seja saudável admitir quando a coisa (qualquer que seja) não está te fazendo feliz, e usufruir do direito de explorar outras ações que te asseguram do bem que tu podes. Pois é tanto que não quero como é, que precisei inventar esta série. Cozinhar implica o amor. E amor AINDA é aquela coisa toda. Revisitei minhas memórias, experimentei, amei de novo e com renovada intensidade cada criatura em quem pensei enquanto cozinhava. Incorporei tudo e todos que pintaram nesses dias todos. Não neguei nada. Transformei tudo. Minhas revoltas e rancores não foram vencidos, devo lhe dizer, mas são obrigados a dividir o espaço com melhores sentimentos meus, e essa espécie de compensação me ajuda a levar.
Sobre acolher o que se aproxima, em ser e sentimento, tenho andado com o Torquato Neto me doendo na garganta. Torquato, confesso, demorou a me afetar. Ele me fez companhia por tanto tempo ali pelos dezenove, em livro emprestado de um professor "maldito", mas eu consegui, com toda a minha estreiteza juvenil, que ele passasse batido, na época. Rapaz, eu que já era "amiga" do Drummond e do Manuel Bandeira, tinha algum impedimento com relação ao Torquato e os de sua natureza, que só no fim dos anos 90 eu entenderia, mas não explicarei aqui por uma questão de pudor e segurança também, eu acho. Ui! O fato é que tenho estado com ele e minha carne dói.  Ou antes me dói a carne, açoitada pelo espírito da tristeza funda, e por isso Torquato se achegou. Sei que reli seus versos, ouvi canções, estive obsessivamente atracada com suas últimas palavras e, quando estava já sem ar, converti meu choro em doce de leite com rapadura, temperado com um pouco de cravo. Ê, ê, Seo Minino, "a alegria é a prova dos nove e a tristeza é teu porto seguro".
Eu encerraria a série com uma receita que tenho a ousadia de pensar que me traduz. Cheguei a produzir e fotografar a iguaria, mas tive que mudar o rumo das panelas e atender à minha intuição. Olhar de novo e quantas vezes para o fogão à lenha da casa da Vovó. Não se trata de apegar-me ao passado por desacreditar na sempre possível felicidade futura, mas de não esquecer do que sou feita e desde onde me desdobro. Liguei para a Tia Zélia pedindo as medidas. Por coincidência ela e Tondeca estavam com a panela no fogo justamente preparando esta sobremesa, e o Primo Ed imediatamente me enviou umas duzentas fotos inspiradoras. E você já pode facilmente identificar qual a minha cozinha e a cozinha de lá.


Minha Tia falou da má qualidade das rapaduras atuais, motivo pelo qual já não alcançamos a mesma textura de outrora. Na minha infância o doce de leite com rapadura resultava deliciosamente caroçudo como uma ambrosia. "Hoje as rapaduras não talham mais o leite, e o doce fica liso como se fosse com açúcar", dizia a Tia Zélia. Não importa, eu necessitava reencontrar ao menos o velho sabor e poder dividir com o jovem poeta que me acompanha, alguma esperança.


Ela me recomendou dois litros de leite acrescidos de 250g de rapadura (bem pretinha) e 250g de açúcar (usei o demerara). Adicionei por minha conta suco de 1/4 de limão e quatro cravos machucados.
Ao fogo. Quando levanta fervura, abaixamos o chama.


Só bem lá adiante, quando começa a reduzir e apurar a cor, é que mexemos de vez em quando para evitar que queime no fundo da panela.


Em dado momento, mais perto do fim, precisamos seguir mexendo sem parar, até dar o ponto, que é quando o doce vai desgrudando do fundo, como se fosse brigadeiro.


O meu ficou mais escurinho que o de Tia Zélia e Tondeca. Certamente pelo uso do demerara. Também a textura do meu ficou uns passos a mais em direção à do doce da minha infância. Pensamos que por causa do limão.


Aquele cheiro e sabor me trouxeram breve, mas intenso contentamento, que pude partilhar com Torquato e pensar junto com ele sobre toda a sabedoria e prazer oferecidos pela simplicidade.


Sua figura foi aos poucos se dissipando, de modo que agora sua cara presença é apenas pressentida.Um nozinho no peito, um choro que não se completa. E aquela imensa revolta por tudo de ruim que se instalou desde a partida de meu adorado Pai, me mata hoje menos que ontem. Não sei como será amanhã, mas é saudável lembrar que posso controlar o mal com a doçura que me habita. Doçura nem sempre manifesta, é verdade, mas, legítima. Com ela não jogo nem engano. Pratico. Partilho. E agradeço a quem a desperta. Como a você, Torquato imenso, que tanta comoção me causa. Te dedico, querido poeta, aquela tua A coisa mais linda que existe. E do Gil. Então...
"Na cidade em que me perco,
Na praça em que me resolvo,
Na noite da noite escura,
É lindo ter junto ao corpo
Ternura de um corpo manso
Na noite da noite escura."

Um beijo em cada um que provar disso tudo, com amor,

Ceronha Pontes

P.S.: Em breve iniciaremos uma nova série, cujo nome ainda não foi definido, mas será um imenso salão onde dançarei com pessoas e personagens que me ajudam a ser. Para o episódio de estreia, estarei de rosto colado com Timóteo (Non ti muovere), trocando confidências. Até.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Como Água para Chocolate - receitas em verso e prosa


CAPÍTULO IX

Nhoque de Inhame
(Celebração à Amizade)

Sim, amigo é coisa muito cara, mas na minha vida tenho o imenso privilégio de que não seja rara. Os tenho aos montes. E são os melhores do mundo.
Nesta série eu não poderia deixar de homenageá-los, elegendo um prato que é a especialidade de um deles, e que tenho como se meu irmão fosse. Sintam-se os outros todos representados porque neste momento ofereço um pouco desta delícia a cada um, desde Tamboril até Cuzco, onde fiz os mais recentes.
Venham comigo ao Edifício Fortaleza, 502, lá na Duque de Caxias, centrão de Fortaleza. A porta da cozinha deve estar aberta, é só entrar. A esta altura o Eddie já voltou pro Recife. Este de cueca vermelha rodopiando pelo corredor é o Pedro. As crianças (Iago e Juan) brincam. Marta deve estar na rádio comandando seu programa Por uma cultura de paz e, fazendo experimentos vocais no banho, está o nosso chef Danilo. Eu sou a da cara emburrada que mora no quarto do meio. Visitas aos montes em todas as horas do dia, principalmente da noite. Todos artistas. Intensos criadores. Meus deuses, como fomos felizes! E antes que eu desande a chorar, porque os dias não estão fáceis, e reviver aquela algazarra me emocionaria demais da conta, vamos ao nhoque.


Acho que até hoje o Danilo reúne o povo no fim do mês com fé de que este prato traga um dinheirinho a mais para todos. A verdade é que nenhum de nós enricou, mas somos a fortuna uns dos outros e isso não tem dinheiro que compre.


O nhoque do Dan é de batata mesmo, convencional e delicioso. Ele aprendeu num programa de TV com a saudosa Nair Belo. Não sei se ele lembrava disso, mas eu estou aqui para reavivar sua memória. Enquanto eu, seguindo as orientações da Bela Gil, que faz inquestionável defesa do uso do inhame na dieta, o adotei. Então, em homenagem a todos os meus amigos, em especial ao mestre cuca Danilo Pinho, que introduziu este hábito de nos reunirmos em torno desta massa que promete prosperidade, lhes ofereço o meu nhoque de inhame, com molho natural de tomate com manjericão.
Duas xícaras de chá de inhame bem cozido e espremido. Uma gema sem pele, três colheres de sopa de manteiga ou margarina, sal a gosto. Mais ou menos uma xícara de chá de farinha de trigo. Misture os ingredientes numa tigela, adicionando só a metade da farinha. Espalhe sobre a mesa um pouco da outra metade restante, para que você possa trabalhar sem grudar, e vá adicionando o resto aos pouquinhos, até que ganhe uma consistência que lhe permita fazer os rolinhos e cortá-los como nas imagens. Se precisar de mais farinha para isso, fique à vontade. Para cozinhá-los, leve ao fogo uma panela com bastante água e um fio de óleo. Depois de ferver, vá colocando os rolinhos um pouco por vez. Eles, é claro, começam o cozimento afundando na panela, mas, quando chegam ao ponto, flutuam. Retire-os e repita o procedimento até que todos estejam cozidos. É bem rápido.
                       
                                

Sempre prefiro molho natural e o meu preparo com dez tomates daqueles mais compridinhos e bem maduros. Corte-os com semente e pele mesmo, coloque no liquidificador aos poucos até que esteja tudo batido. Peneire. Numa panela grande adicione quatro colheres de sopa de azeite de oliva extra-virgem. Aqueça. Refogue três dentes de alho picados. Quando dourarem, adicione uma cebola média picada e alho poró a seu gosto e refogue mais. Adicione então a polpa de tomates já peneirada, uma colher de sobremesa de açúcar (para quebrar a acidez), três colheres de sopa de molho shoyu, sal a gosto, um pouquinho de cheiro verde (coentro e cebolinha), dez azeitonas verdes picadas e muuuuito manjericão. Deixe cozinhar em fogo baixo e sem pressa. Até reduzir ou apurar bem, ganhando aquele vermelho tentador.


Nhoque no prato, coberto com este delicioso molho e finalizado com parmesão de verdade, ralado grosso.
Esta receita serve três, mas você pode ir multiplicando por quantos vierem celebrar com você esta riqueza que é a amizade. Ao multiplicar, claro que você vai achar o momento de reduzir a manteiga e as gemas. Já lhe disse mais de uma vez que cozinha é sensibilidade e nada melhor que os amigos para nos ajudarem com isso.


É prato simples. E a simplicidade é mesmo sofisticada. Sofisticação é uma palavra que o Danilo adora e tem tudo a ver com ele, em tudo o que ele faça. Danilo e todos os moradores e visitantes daquele 502, como eu amo vocês!
A vocês e a todos os meus outros amigos, com profunda gratidão, desejo bom proveito.

Ceronha Pontes

Extra: uma canção do Petrúcio Maia e do Belchior pra vocês, cujas lembranças me salvam mais do que vocês possam supor. Incêndio.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Intervalo III


Há tempos em que qualquer solicitação, sobretudo as mais carinhosas, apavoram. Faz-se a "morta" de cozinheira e é já estar viva o suficiente.
Triste dizer não aos gentis, aos amorosos, aos verdadeiros, então ela foge do telefone como o cão da cruz. O fixo, por exemplo, afônico de tanto gritar em vão. Mas hoje, perigando cegar, saiu da caverna. O intento valia o risco e a companhia do CK valia toda concessão à carne de porco frita na manteiga de garrafa, acompanhada de farofa, feijão verde e vinagrete num boteco de mercado. Com cerveja bem gelada, obviamente.
A conversa tinha foco nos amantes M e V.
Estava escuro já, quando se encavernou outra vez.  E não se arrepende um grama do coração acuado no peito atravessando a cidade como se fosse ser encontrado por uma bala perdida. Nem da enxaqueca dos infernos que lhe custou a ousadia. Sim, M e V convidam a doer no inferno e a provar do tempero daquele.
Mais não digo, nem sob tortura.

O vídeo ilustrativo deste intervalo não podia ser outro:


sexta-feira, 11 de julho de 2014

Como Água para Chocolate - receitas em verso e prosa


CAPÍTULO VIII

Bolo de banana com canela

Outro dia esbarrei nos meus escritos dos onze aos treze. Quanta amargura, Carlos! Chega a ser engraçado esse transbordamento de desesperança em ser tão principiante em tudo. Tu não demorarias a chegar em capa dura e vermelha e confiei imediatamente em ti, como poucas vezes me aconteceu na vida e, quando aconteceu, me orgulho de ter sido sempre o certo. Nunca vou poder te agradecer o bastante pela caríssima companhia, que me conduzia o olhar e provocava ideias, me protegendo da rudeza do mundo. Imagino que Papai já tenha te encontrado e te agradecido também, por preencher de alguma forma a sua involuntária ausência.
"Há muito tempo, sim, não te escrevo. Ficaram velhas todas as notícias". Mas creia, também no meu coração "perdura a graça do amor, florindo em canção". Por toda a vida, meu velho amigo. E é tão verdade que quando esta me manda um safanão, é tua sabedoria que se impõe sem que eu precise te buscar. Tu estás. Tu és refúgio constante, ainda que tenhas ficado cada vez mais em silêncio, dividindo generosamente o espaço com os outros que vieram depois. Riqueza, Carlos, é me reconhecer em ti, é ser acolhida em tuas palavras.
Aceitas um conhaque? Eu sim.


Senta-te, que te preparo um bolo com essas bananas à beira do apodrecimento. Acho que gosto de vê-las chegar a esse ponto crítico do amadurecimento, para sentir o prazer de transformá-las antes que se percam definitivamente. Como tu dizias: "para exaltar o redivivo amor que de memória-imagem se alimenta e em doçura converte o próprio horror". 
Tem certeza que não quer o conhaque? Pois não recuse este café forte e me ajude com os ovos. Separe as claras das gemas de três. Ponha uma pitada de sal nas claras, por favor. Minha Mãe diz que ajuda a dar firmeza às claras em neve. Queres bater? Use esses dois garfos. É bem divertido. Enquanto isso eu descasco e machuco as bananas. Machucar com atenção e carinho é possível com as bananas. Melhor não tentar com outras criaturas. Pronto, uma xícara de chá bem cheia de bananas machucadas e doces. Como eu disse, com as bananas não chega a ser uma contradição. Reservemos.


Oh, que lindas claras, Drummond! Ponha as gemas e continue batendo. Obrigada, querido, agora veja que creme tão bonito se misturamos esses ovos batidos com uma xícara de chá de açúcar e um terço de xícara de chá de óleo. Misturamos bem com a colher de pau. Podes medir para mim um pouco mais de meia xícara de farinha de trigo completando-a, até que fique bem cheia, com farinha de aveia? Muito bem, misture as farinhas com canela a seu gosto. Eu gosto um monte de canela. Isso, misture com toda essa muito sua delicadeza, meu caro. Importante agora adicionarmos ao creme produzido as farinhas com canela, alternando com as bananas. Uma parte daquelas, outra parte destas, até o fim. Misturar com cuidado, com amor, afinal o propósito é promover a capacidade de superação das bananas. Difícil superar o que seja em situação de desamor, não é mesmo? Tu sempre repetias, cantando o desassossego para a minha tola juventude que insistia em perseguir o sentido de tudo, que era o "amor, a descoberta de sentido no absurdo de existir".
Ai, acho que necessito outra dose de conhaque. Não temas, meu amigo, ainda sou capaz de misturar esta colher de sopa de fermento em um terço de copo americano de leite. Veja como cresce. Adicionamos à massa do bolo, misturamos com redobrada atenção, que fermento precisa ser muito bem tratado ou ele estraga tudo o que fizemos até aqui. Ponha numa forma redonda de furo no meio, untada e coberta com uma camada fina de açúcar misturado com canela. Este procedimento resulta numa crosta deliciosa envolvendo todo o bolo.
Teu café esfriou, Carlos. Queres que te prepare outro? Ora, não te preocupes, meu anjo itabirano, "a grande dor das cousas que passaram transmutou-se em finíssimo prazer quando, entre fotos mil que se esgarçavam, tive a fortuna e graça de te ver".
Trinta minutos. Trinta e cinco, talvez. Sentes o perfume? Agora prove. Prove com este chá de frutas cítricas, já que recusas o café.


Te vendo aí tão gentil, tão sábio, tão sem pressa diante deste bolo salvador de bananas e de mim, eu penso naquele teu outro verso de Aparição Amorosa: "tua visita, apenas uma esmola". Ele não se aplica a ti, meu Carlos. Não a ti, que há tanto te demoras. São quantas noites em décadas, meu poeta, que tu consolas? Ah, Drummond! "Eu não devia te dizer, mas essa lua, mas esse conhaque, botam a gente comovido como o diabo".

Ceronha Pontes

Atenção!!!
1- Todos os versos citados são do Carlos, é óbvio.
2- Repare que só aparecem dois ovos na foto. Era eu tentando reduzir da receita, mas o terceiro fez falta. USE 3 OVOS.
3- O Chico César é outra boníssima companhia no preparo dessas delicadezas.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

Como Água para Chocolate - receitas em verso e prosa


"Adorei as almas,
As almas adorei."

CAPÍTULO VII

Vatapá Vegetariano da Ceronha

Renego a escrotíssima expressão "negro de alma branca". Tou com o Chico César e num abro:
"Alma não tem cor. 
Ela é colorida, 
Ela multicolor".
Deus defenda fosse de outro jeito, e eu estar sujeita a não merecer o desembaraço da mistura. A negritude que me cabe tem as "cadeiras elétricas da baiana", me aproveitando outra vez do compositor paraibano. Negritude sim e quem duvidar repare no meu "pixanim". Além do muito gosto e habilidade com angus apimentados. A-DO-RO comida de preto. Me sacudo todinha só de pensar. E é com o MEU vatapá vegetariano que boto os amigos loucos.
Aprendi a preparar muito cedo esta iguaria, uma vez que é prato por demais distinto e presença garantida nos banquetes tamborilenses. Na falta de camarão no sertão, usamos o frango desfiado mesmo. Sugiro que você dê um rolê pelo google, se lhe interessar a incrível receita original. Eu, no entanto, tive que adaptar o prato, que era um dos preferidos do Eros no tempo em que ele ainda comia bicho. Quis lhe dar este alento quando adotou outra postura. Sucesso total, não sou dada a falsa modéstia. Alegria que dura mais de década conseguir trazer o vatapá para a cozinha vegetariana preservando-lhe as características. É o prato que mais gosto de preparar. Quem me conhece sabe que não poderia subtraí-lo desta série que diz tanto, mas, TANTO de mim, e que lhes ofereço sem reservas.
Em homenagem ao Eros (tou pra ver amor mais resiliente, êta lelê!), aos meus irmãos Dé e Chico, e à sua admirável Mãe Maria, toda negra, toda linda, toda baiana. E como cozinha, a Dona Maria! Odoiá, Mamãe!
Bote uma tecnomacumba na radiola, fazendo o favor. Conhece não? Clique aqui. Clique, Seo Moço e Dona Menina, que aqui preconceito não tem vez. E vamos gingando enquanto rasgamos oito pães franceses dormidos. Adicionamos 1 cebola, 1 tomate e 1 pimentão médios picados. Também 1 pimentinha de cheiro e 2 dentes de alho. Um pouco de alho-poró e bastante cheiro verde. Um pouco de sal e pimenta calabresa a gosto. Detalhe: se você tiver a pimenta malagueta, amasse-a num pratinho misturada com um pouco de leite e só coloque na hora de levar ao fogo. Explicarei adiante. Agora molhe estes pães temperados com 4 xícaras de leite e reserve.


Prepare 1/2 litro de caldo de legumes conforme lhe ensino no capítulo IV, ou use 2 tabletes de caldo de legumes fervidos e dissolvidos nessa mesma medida de água. No caso de usar os tabletes de caldo, não ponha sal no tempero do pão, pois esse caldinho artificial é muito salgado. Reserve.
Vamos à proteína da soja, substituta do camarão nessa proposta. Meça uma xícara de chá bem cheia daquela miudinha que lembra carne moída. Tanto faz se clara ou escura, não altera o sabor. Cubra com água fervente e deixe hidratar por dez minutos. Depois escorra, resfrie em água corrente e esprema delicadamente para retirar todo o excesso. Pique uma cebola pequena e cheiro verde a gosto. Leia-se coentro e cebolinha, nunca fiz com salsinha. Aqueça numa panela três colheres de azeite de oliva extra virgem e refogue bem a cebola. Coloque um pouco de sal e shoyu a seu gosto. Eu devo usar umas 3 colheres de sopa, não sei ao certo, faço no "olho". Use a sua própria sensibilidade para isso, sem esquecer que o shoyu já vem salgado. Acrescente o cheiro verde e refogue bem. Reserve.
Pique 10 azeitonas verdes e também reserve.


Processamos agora o pão no liquidificador adicionando caldo de legumes aos poucos e na medida da necessidade, até que tenhamos um mingau consistente e muito perfumado. Levamos ao fogo e mexemos sem parar. À medida que engrossa vamos adicionando caldo de legumes, até que sobre só um dedinho. É nessa etapa que você deve ir colocando aos poucos a pimenta malagueta e provando sempre para deixar a seu gosto. É também nesta etapa que sentimos a pimenta calabresa, se optarmos por ela, e acertamos a danada, se necessário. Por isso é importante, na hora de temperar o pão, não colocar tanta pimenta. É um ingrediente que inspira atenção e cautela, concorda?
Pois acrescente agora a soja refogada, as azeitonas picadas e o dedinho do caldo que faltava. Mexa bem. Acerte o sal, se você achar que deve. Adicione umas 4 colheres de azeite de oliva extra virgem para finalizar. Misture. Apague e sirva com acompanhamentos suaves. Aqui eu usei uma arrozinho integral feito com cenoura e quiabo e uma saladinha bem besta de alface crespa com tomate. Refeição coroada com uma deliciosa cerveja negra, tal e qual fiz no capítulo I, com o arroz chaufa.


Quando o danado esfria um pouco ganha esta firmeza. Eu lhe garanto que, apesar de suprimir alguns ingredientes e substituir por soja o camarão, este prato é absolutamente delicioso. E é claro que você pode trabalhar com o tradicional azeite de dendê. Opto pelo de oliva para suavizar o vatapá, pois a suavidade é uma proposta da cozinha aqui de casa e, mais uma vez, lhe garanto sem medo que fica boooooom demais da conta.

                          

Se acabe. Tenha medo não.
Beijo apimentado desta Ceronha.
AXÉ!

P.S.: No próximo episódio, um bolo de banana com canela que Carlos Drummond de Andrade veio saborear comigo, enquanto me dava uns conselhos. Aproveito para pedir a quem seja, nunca usar o santo nome do Carlos em vão.

domingo, 6 de julho de 2014

Como Água para Chocolate - receitas em verso e prosa


CAPÍTULO VI

Bulim

"A Mamãe não podia ver semente que já ia plantando e distribuindo as mudas."
(Tia Zélia, sobre a Vovó.)

Abri esta série fazendo três recortes da minha trajetória como "cozinheira" que justificavam dizer do amor necessariamente empenhado no ato de cozinhar. De outro modo, em tudo na vida, eu não sei, nem me dedico.
A cozinha da minha avó materna foi a primeira referência citada naquela introdução. Viajei até Tamboril para buscar este capítulo. Tia Zélia gentilmente se ofereceu para fazer os tradicionais bulins, tão representativos da culinária tamborilense e muito especialmente da casa da Vovó.


Estou há dias vendo as fotos que fiz, recordando a sensação de meter de novo a mão naquela massa, relembrando as conversas, comendo os que eu trouxe comigo, mas sem conseguir escrever uma linha que fosse até hoje, quando chegou ao fim a minha tolerância para com meu excesso de vaidade. Ora, ora, falar da Vovó é coisa pra mais de livro, e eu insistindo pra ela caber neste humilde post. Pra começar, até onde eu contei estávamos em 19 filhos, 50 netos, 30 bisnetos, 5 tetranetos. Há que ter muita generosidade e disposição para, em companhia do Vovô, é claro, abastecer de pão, coragem, esperança e alegria tão significativa tropa. Nós somos "os Cutes" do Tamboril. "Cutes", como era conhecido meu avô Francisco. Ou simplesmente "os Cute". E "Cute" é raça pra gostar de reunir gente em torno da mesa farta. Como eu dizia no capítulo de abertura, visita naquela casa tem gosto de ser recebida na cozinha e não dou notícia de uma que não tenha perdido o acanhamento diante da oferta. É doce de tudo quanto é especie. O de jerimum com tamarindo que a Vovó fazia era a coisa mais saborosa deste mundo todinho. Me lembro como se fosse agorinha mesmo o cheiro e o gosto das cocadas que eu não conheceria igual longe dali. O feijão, a paçoca, o mungunzá, as pamonhas, as tapiocas, o doce de mamão com coco, o doce de leite inigualável da Tia Zélia... É tanta coisa que eu podia passar o resto da vida escrevendo sobre e ainda deixar a tarefa de herança para os que tenham a decência de não permitir que morra esta vocação da família.
Talvez ainda exista naquela casa um forno microondas empoeirado e enferrujado pelo desuso, posto que ali não abdicamos do modo mais incrível e deliciosamente arcaico de preparar o alimento, e que Tia Zélia mantém vivo em labaredas que aquecem o coração do "Cute" mais distante. Do vasto repertório amplamente praticado e reescrito por minha Tia, elegi os bulins, porque são biscoitinhos de goma que todo tamborilense dá a vida por uma fornada. Os elegi não simplesmente pelo sabor, mas por quanto eles agregam. Eu contei um pouco lá atrás sobre todas as mãos, pequeninas ou não, envolvidas na tarefa. Me ocorre pensar que a coitada da Barbie nunca ia mesmo ter chance comigo, se eu tinha a verdade como brinquedo. O calor, o aroma, o sabor e a condução de minha interessantíssima Avó, hoje e muito justamente função da Tia Zélia. Comer cru, comer quente, comer por muitos dias até que viesse a próxima fornada. Nunca houve castelinho de plástico que me seduzisse diante da nossa legítima fábrica de doces, em casa tão grande, com quintal tão atraente e tudo tão carregado de amor. Até os carões da Vovó, que nunca foi de adular menino. Esta era sem dúvida a sua característica mais divertida e adorável. Dizia tudo o que pensava, a Vó Totonha, sem perder em amor e carisma. Carisma que tou pra ver, viu?
Pois bem, esta é minha Tia Zélia, toda trabalhada na sua touca e digníssimo avental, fazendo questão da propaganda da manteiga do Pajeú. As famílias do Pajeú e tudo quanto produzem são da melhor qualidade.


Li a receita dos bulins escrita por minha tão imensamente querida Tia Nilza, que há quase vinte anos foi viver em outro plano. Emoção e tanto a sua letra me causou.


É bulim de ruma, não tenha preguiça. Junte a meninada e não precisa sofrer demasiado se não dispõe de um forno como este. Vamos botar uma fé no seu forninho brastemp, né? E muita fé na sua disposição pra correr uns quilômetros, porque esta receita passa longe do conceito de ligth. É pecado muito e eu adoro.


Anote: 5 litros de goma (a mesma usada para fazer tapioca, só que seca), 20 ovos, 2 quilos e meio de açúcar (isso mesmo: dois quilos e meio), 1 xícara de chá de manteiga, coco ou queijo à vontade (esses a minha Tia fez com um pratinho de sobremesa de queijo coalho do Pajeú bem raladinho), 1 colher de sopa de fermento em pó. Raspas de 3 limões. Reserve metade da goma que vai se incorporar à receita na hora de dar o ponto e a forma.


Bata os ovos no liquidificador e adicione à outra metade da goma já misturada com o açúcar, o coco (ou o queijo), a manteiga, as raspas de limão e o fermento. Misture muito bem. Deixe descansar por umas três, quatro horas.


Sobre uma mesa limpa, vá jogando a goma seca reservada, para evitar que gude e para dar o ponto do bulim. Um pouco por vez, vá misturando e amassando até que perceba uma certa flatulência na massa. Tenha vergonha não, isso é da vida.



Nesse momento abra a massa com o rolo e corte como nas imagens. Organize-os numa assadeira também polvilhada com a goma, para evitar que grudem no fundo. Repita este procedimento até que toda a massa vire bulim.



Rende muito. Muito mesmo. O tempo no forno é curto. Lamento que você não possa contar com a nossa Tondequinha, especialista em assar bulim. Para minha alegria, uma assadeira passou um pouquinho do ponto. Adoro os mais tostadinhos. Comi por mim e pela prima Helânia, que sentia o cheiro lá em Brasília.


Agora é guardar. Lá ainda se usa para isso uma lata de biscoito Fortaleza que tem pra bem mais de trinta anos.


É tanto que me lembro sobre ser "Cute", sobre a Dona Totonha multiplicando pães e saberes, que agradeço. Agradeço e agradeço. E me encho de uma vontade grande de me espalhar e cantar o tempo. Acho que por isso essa série e esse Caetano Veloso pra terminar. Por hoje. Cantemos:
"De modo que o meu espírito 
Ganhe um brilho definido.
Tempo, tempo, tempo, tempo,
Eu espalhe benefícios.
Tempo, tempo, tempo, tempo..."

Ceronha Pontes

sábado, 5 de julho de 2014

Intervalo II


PELO SABOR DO GESTO

"Eu já toquei o amor pelo sabor do gesto,
Confesso que perdi, me diz quantos se vão?
Paixões passam por mim, amores que têm pressa
Vão se perder em si."
(Zélia Duncan)

Demorando a vir com o próximo capítulo porque fui buscar a receita lá no meu sertão. Ela está assando num forno à lenha que me comove por demais e talvez eu nem encontre o jeito de dizê-la senão pelos convencionalíssimos ingredientes e modo de preparar. Trata-se dos biscoitos citados na introdução da série, super representativos da cozinha da Vovó. Desconfio que nada do que eu componha os fará enxergar a minha Avó tal como foi, como é e será sempre aqui muito dentro de mim, ou, ao contrário, aqui no mais dentro de dentro dela, onde me fiz. Então admiti e assumo agora este segundo intervalo.


Entre a sopa de abóbora do capítulo anterior e o que virá, a viagem até Tamboril passa necessariamente pela capital, Fortaleza. Lá o meu amigo do peito, Rogério Mesquita, tomou conta de mim. Desde me buscar no aeroporto, levar pra jantar com outros amigos e depois pra dormir no conforto e acolhimento de sua casa. Entre os diversos e muitos assuntos, aquele filminho francês que ele me deu de presente porque sabia que eu ia adorar e, adorei: Les Chansons d'Amour. Já o citei outras muitas vezes aqui no blog. Além de falar um monte e apaixonadamente sobre a Chiara Mastroianni (enquanto eu sempre que penso no filme é muito pelo Louis Garrel), Rogério veio me dizer da versão da Zélia Duncan para uma das canções que mais gosto do filme: As-tu déjà aimé. E eu não me canso de ouvir. Sem contar o Fernando Pessoa sempre nos estendendo, outro presentinho da Duncan nesta gravação. Repasso, como cada uma das receitinhas aqui compartilhadas, acreditando absolutamente no valor de servir "o bom da festa de um jeito mais feliz".
Bon appétit.

Ceronha Pontes



"Não me ame tanto, mas me ame por muito tempo". Algo assim.