segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Velhos amigos


Caríssimo Nikolaj,

Fiquei muito emocionado com tua última carta. Longa, detendo-se em questão da maior importância para mim. Um cuidado que me comoveu. Obrigado.
Tuas considerações eu respeito, acredites, mas não concordo contigo em tudo.  Em verdade me preocupas. Parece-me que desististe. Entendo que velhos como nós, que já viveram tanto e tão intensamente, tenhamos aprendido qualquer coisa sobre a insustentabilidade dos prazeres e que, por fim, a vida está muito mais a contemplar outros estados. Mas não penso que seja digno aceitar tanta demora no sofrimento. Pareceu-me que tu me sugerias isto ao dizeres para que eu me conformasse. Há situações em que podemos sim, e devemos: agir, transformar. Das escolhas que temos, poucas que sejam, não podemos nos furtar.
Se a criatura está doente, é preciso tratar. E ponto. Acho estranho que todos os outros doentes desejem e lutem pela cura, enquanto os doentes do espírito vivem gozando com a própria dor. E tu sabes o quão avariado é o meu espírito, de modo que falo por um conhecimento de causa que tu mesmo me ajudaste a conquistar.  É justo, admito, se é da escolha do indivíduo viver atormentado assim, que viva. Desde que não afunde, não envolva, não contamine, não adoeça outras pessoas. Será possível?
Fúria, medo, desdém, posse, inveja. Ah, esta última é de todos o maior veneno agindo na questão que te coloquei.  Inveja da liberdade, da segurança, da capacidade de criação e superação do espírito próximo. Aí a criatura doente se empenha em diminuir, destruir o que é do outro, para não estar só na sua pequenez.  Conformar-me em ser tratado assim? Não posso Nikolaj, aceitar a mesquinharia sem me espantar.
Naquilo que tens razão, estou sim, doente de compaixão. Deve ser. Porque ainda brigo para ver brilhar de novo o olho apagado que tanto amei. E que vem me apagando o olhar dia a dia. Responsabilíssimo, tu bem sabes, não jogo tudo fora por um colorido fugaz. Disso eu nunca fui capaz. Sei que sofro menos de ver findar o carnaval, que ver poluído o lago denso onde repousei. Choro a quarta-feira de cinzas, sabendo que não demoro mesmo a descartar a fantasia. Mas conformar-me em ver meu lago sujo não me parece o certo. Faço motim, meu caro. Não fujo à luta. A diferença agora, enquanto sofro pelejando para limpar estas águas, é que não me culparei mais pelas pequenas alegrias a mim tão generosamente destinadas. As Claras Luas que mais perecem sóis brilhando no meu Céu. Os breves carnavais recém-citados que atravessam a minha luta. A alegria é um direito.
Nikolaj, sobre a minha declaração de amor de outro dia, perdoe os excessos deste velho que não lhe queria constranger. Amo desavergonhadamente os amigos, que são um tesouro na minha vida, embora eu conviva cada vez menos. Às vezes penso que te assombra o amor. Qual seja. Pensei sobre isso de novo quando li o teu “conforme-se”.
Acompanha a carta um cubano daqueles. Que ele te traga boas ideias.

Sou o teu velho e gagá,

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