sábado, 14 de fevereiro de 2015

A Mulher e os Cães


"Chorei porque daqui por diante chorarei menos.Chorei porque perdi minha dor e ainda não estou acostumada à ausência dela".
(Anaïs Nin - Henry & June)

Triple Portrait (Lucien Freud)

Ora, é preciso reinstaurar o gozo! Pensei alto. O mundo quase ouviu. Depois fiquei ali, quieta, abandonada entre os cães. 
Certa vez um amigo me confidenciou que esteve no fundo de um poço tão medonho que os ratos, cheios de intimidade, o seguiam pelos becos. Lembrei disso quando me vi acariciando os pulguentos. Não gosto deles e, no entanto, restamos nós.
Chorei de novo. Solucei saudades de quando fui aquela que tu adoravas. Quanto poder conferi a ti!
Tu não virás me buscar, é definitivo. Nem eu tentarei. E isto eu gostaria que tu soubesses. Todas as vezes que a vida me puser diante de ti, antes terei esgotado todos os desvios. 
Não suporto a feiura que assumi aos teus olhos. Não conheci mulher tão feia quanto esta que vejo refletida neles quando se voltam para mim. Isto me enche de vergonha do mundo todo, como se todos me enxergassem assim. 
É preciso reinstaurar o gozo! Penso novamente e aos berros. Os cães respondem cúmplices. Uivos ecoam dentro da noite. Então percebo o equívoco. Nunca fui capaz. Desde muito antes de ti. Desde sempre. Tive tanto medo, tive tanta culpa, que nunca fui capaz. Em verdade é preciso instaurá-lo. Contra toda negação estabelecida. É direito. É mesmo um dever. Pago com a fogueira, mas  devo cumprir. Decido.
Fogos explodem no céu. É carnaval. Os cães fogem velozes e me arrastam com eles. Não sei para onde me levam, mas sinto o vento redesenhando meu rosto.

Ceronha Pontes
Recife-Pe
13 de fevereiro de 2015


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