domingo, 6 de outubro de 2013
NÓS
Eu Derrotada(D), mal me bulo neste domingão voluntariamente solitário. Eu Outra(O), não aguentando mais, abro janelas, lavo louça acumulada, tomo banho, ponho roupa limpa e convoco:
O- Bora.
D- Hein?
O- Naquela padaria que tu gostas.
D- Looooonge.
O- Por isso mesmo. Suar.
D- Domingo é perigoso caminhar por ali.
O- Perigosa sou eu. Bora!
Fomos. Eu D olhando para todos os lados, temendo cada alma vivente que se aproximasse, enquanto Eu O, com o corpo todo alinhado caminhava dona do mundo. Chegamos. Eu D fui do "não me interesso por nada" até uma súbita e estranha vontade de coxinha. Eu O, horrorizada, disparo:
O- Me poupe. Pãezinhos recheados com ricota e ervas finas. Sem choro.
Eu D, pra variar, pouco discuto, ousando apenas negociar com muito jeito a troca do habitual bolo de ameixa por um xadrez. Eu O, para surpresa, concordo. A pamonha pegamos sem nem comentar, posto que esta exerce fascínio absoluto sobre qualquer de nós, não importando sua repercussão na dieta. Eu O ponho uma latinha de chá para tomarmos no caminho de volta. Uns queijos...
O- Tá desinteressante hoje, né?
Eu D, entorto a boca como quem concorda, mas penso naquele lagarto em finas fatias marinadas. Pagamos. Na calçada Eu D falo antes que me arrependa:
D- Tá escurecendo e ficando realmente perigoso. Porque não tomamos um ônibus ou um táxi, sei lá, o primeiro que passar?
Eu O, com a segurança de um exército, determino:
O- Não. Andar. Se o bandido vier desarmado, só na senvergonhice, corremos aos gritos por entre os carros, vai ser divertido. Se vier armado, este aparelho de celular e o troco não vão fazer falta. Talvez os pães, mas, vão-se os pães e ficam os anéis, como é?
Eu D fecho a cara vencida e acompanho. Eu O bebo chá com a boca direto na lata enquanto Eu D penso nas bactérias, nos riscos à saúde, essas coisas. Em silêncio, obviamente. Chegamos em casa como Eu O queria, suadas, bem suadas. Concordamos com banho frio. E adiantava Eu D discordar? Comemos o que trouxemos e o que tínhamos em casa. Como diria a nossa Mãe, duas "sem lei", Eu e Eu. Barriga estufada, Eu D ainda comento, como quem não quer nada, o cheiro bom do churrasquinho na petiscaria da esquina, e Eu O não deixo por menos:
O- Qual a participação do boi no teu fracasso?
D- Do boi?
O- Do boi, da galinha, do gato... Que outros animais eles servem ali?
D- Ah, tá, foi só um comentário.
Silêncio.
D- Eu devia ir ao teatro. Prometi.
O- Dá um tempo, pára com esse martírio. O teatro espera, alguma dúvida? Sempre esperou.
Último gole de café com leite e:
D- Então vou ver o Faustão.
O- Nunca. Assim também é muita derrota. Precisamos estar atentas. Deve haver uma coragem aguardando o momento certo para atuar.
D- Você é bem corajosa.
O- Mas você não. De modo que estamos pensas e mancas. Quando a coragem tomar você aí eu quero ver. Doida pra ver o rebuliço.
D- Ok, sem Faustão, fazemos o quê?
O- Um filme?
D- Pode não ser do Kurosawa?
O- Não te preocupes, nem eu tou podendo com tanta humanidade. Um negocinho mais leve.
D- Então...
O- Non Ti Muovere, nem pensar. Meia Noite em Paris?
Silêncio.
O- Vick, Cristina, Barcelona?
Silêncio.
O- Aquele que você gosta... Faz tempo que não vemos...
D- O Jardineiro Fiel?
O- Eu ia dizer O Banquete do Amor, com o Morgan Freeman. Você gosta.
Silêncio.
O- Ok, The Constant Gardener, se você me der três motivos.
D- Rachel Waisz, Rachel Waisz e Rachel Waisz, não necessariamente nesta ordem.
Rimos. Eu O reclamo ainda, mas só de birra, já que o objetivo era despertar alguma vontade em Eu D e, convenhamos, vontade de Rachel Waisz é bastante coisa já. A gente se despede rumo à África, conduzidas com muito requinte pelo Fernando Meirelles.
Ceronha e Ceronha
Recife-PE, 06 de outubro de 2013.
P.S.: Eu O observo, mas não digo nada que é pra não estragar, que Eu D ainda nutro uma esperança.
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