sábado, 12 de outubro de 2013

A velha infância


Para Aninha, com todo amor.


Minha sobrinha dia desses eufórica ao telefone, porque havia encontrado na casa que foi do meu venerado Pai um caderno. O primeiro de capa dura que eu tive e no qual, na idade dela, oito anos, eu escrevia poesias.

- Titia, seus desenhos são HOR-RÍ-VEIS, mas a senhora escrevia cada coisa! Tem uma aqui que a senhora fez pro Vovô, A Canetinha Dourada, é tão linda, Tia!

Vão descontando da avaliação o fato de que é ainda uma criança e, ME AMA.
Ignorando meus protestos, leu pra mim, às risadas, quase todas. Morri de vergonha na hora, mas, depois me enchi de gratidão por ter de algum modo merecido observar e escrever aquelas puerilidades.
Não fui menina de conseguir correr na rua. Desajeitada, toda vez voltava, como diz a minha Mãe, com a cabeça do dedo arrancada. Mas tinha já olhos de enxergar poesia na algazarra da molecada da Rua Benjamin Constant, muito especialmente da Fátima do Pinto e da Rosa do Seo Chico Brício. Ninguém podia com elas e isto as tornava absolutamente FAS-CI-NAN-TES. 
Eu era, no entanto, boa no trato com as bilas (bolinhas de gude), que jogávamos, meninos e meninas, na rua ou nos quintais da vizinhança.
Na época a rua era de paralelepípedo e enfeitada com pés de benjamins plantados na frente de quase todas as casas, com exceção da nossa, onde se exibia uma algaroba gigante, e das castanholas do Seo Chico Inácio. Falar em quintal, o de nossa casa tinha um pé de seriguela incrível, modelado de um jeito que facilitava sua escalada. Apavorada, raramente eu saí da base, mas ficava maravilhada com as habilidades da Joana do Liconde e da mana Ceiça "arriba e abaixo" dele. Cicinho do Seo Antônio Calô também se aventurava por ali. 
Aquela velha casa empoeirada de gesso, o chão marcado por pegadas de menina pequena, encantada com as criaturas que a mãe esculpia. Ali eu dançava e fantasiava o futuro com a Jesus da Zefa e tinha a imensa alegria de ver entrar e sair a Dalvinha de Seo Leonel, que passaria trinta anos perdida de mim, mas que depois de recente e emocionado reencontro no Rio de Janeiro, não me escapará nunca mais. Era um tempo em que a primirmã Helânia, só um tiquinho mais velha, me usava para exercício de sua autoridade, e eu fingia obediência, para não decepcioná-la. Pobre prima não demoraria a perceber minha discreta, porém incorrigível rebeldia. Te amo, Ainaleh! Desta casa também não esquecerei que, embora nunca uma festança de aniversário, recebia todos os anos, na data querida, a visita linda da prima Mychelle e ambas ficávamos ansiosas pelo dia seguinte, quando era a minha vez de lhe retribuir a delicadeza no seu aniversário. Duas arianinhas , duas fogueirinhas do bem.
Medo d'água grande e de altura, quando a Barragem Pedrical não tinha sido aterrada na enchente de um ano qualquer, ficava excitadíssima e feliz só observando a menineira saltando nas águas de invernos generosos. Até o dia que meu Pai, que me queria destemida, me empurrou lá de cima do paredão e então eu não queria mais saber de outra coisa. Tibungo, tibungo, mil vezes tibungo!!!
Nessa fase do Pedrical a casa da família já era na praça da Igreja, o que facilitava estar com a primaiada que aportava na casa dos nossos avós, do outro lado da praça. Além da convivência absolutamente divertida com a Silvana da Dona Ilza e Seo Chiquim Pereira, e a filharada maravilhosa do Casal Bodim. 
Da Escola General Sampaio e de outras ruas e vivências naquele meu Tamboril de saudade, é tanta infância pra guardar que temo cometer imperdoáveis esquecimentos ao citar nomes, mas, só Santo Anastácio, o padroeiro de lá, me adivinha a vontade de ir de A a Z passando necessariamente pela Aucileide de Seo Lourival, a Gilcéia do Seo Pedro Jesuíno, o Givaldo da Dona Zulmirinha, a Lalá da Dona Geni, a Leila de Seo Araújo, as meninas da Dona Medalha, as da Dona Socorro Eduardo e, pronto, INJUSTÍSSIMA com um sem fim de meninos e meninas que só de lembrar sou criança outra vez, e a quem peço desculpas, posto que lhes devo as mais sinceras alegrias. Do mesmo modo os primeiros companheiros de cena, quando teatrar não passava de brincar no palco da Casa Paroquial, com o apoio e estímulo do meu Padrinho, o Padre Helênio. 
Cidadezinha cercada por serrotes lindos, onde me doía desde pequena, por sensibilidade própria e por toda a  influência do olhar paterno, as agruras da seca, bem como nada jamais foi tão encantador quanto vê-la verdejar nos primeiros sinais das chuvas de cada inverno que testemunhei. Me ocorre de imediato que escrever tão espontaneamente aqui sobre chuva e seca é revelador de meu respeito à Natureza. Só a ela me rendo. Pé de pau, banho de rio, doce de leite feito no fogão à lenha da Tia Zélia, os canteiros da Vovó, suas flores. Meninada suada, assanhada, pé descalço nos terreiros. Todos muito livres naquele Torrão em saudosos tempos de paz. Paz que anda agonizando em tudo quanto é rincão, consequência de um jeito bastante tosco, perverso de se pensar o progresso, e que nos põe em estado lamentável de consumo. Consumo de descartáveis, consumo uns dos outros até que nos sintamos, como as coisas, obsoletos. 
Oh, não, hoje não quero ser triste!!!
Quero é agradecer por ter sido menina pequena no velho Tambas, em companhia de meninos e meninas que transformavam qualquer pneu velho, qualquer lata de Óleo Pajeú em brinquedos mirabolantes, de fazer sombra nesses monstrengos vendidos a preço de ouro e pelos quais nossos pequenos de agora se acabam na ansiedade de possuir. Definitivamente, sou inteira agradecida por nunca ter tido a Barbie como ideal. Ver a Fátima do Pinto e a Rosa do Chico Brício correndo sem chinelos pelo calçamento, como se as pedras fossem nuvens, era infinitamente mais inspirador.
Agradeço à Aninha, que vivendo naquela casa onde eu fui essa pessoa aí, me devolve forças para seguir.

- Titia, agora preciso encontrar o seu livro O Papagaio Real. Me diga direitinho como ele era.
- Capa dura e branca, ilustrada com um papagaio bem grande, e colorido, e ferido. Talvez não exista mais. Traças, cupins devem tê-lo devorado.
- O cupim tão pequenininho ia morrer de dor de barriga comendo seu livro de capa dura.
- Cupins derrubam casas inteiras, Ana.
- Nossa! Mas eu vou achar, a senhora sabe que eu não desisto. Vou procurar na casa toda, todos os lugares, até no quarto do quintal, onde a Vovó disse que está o seu Pequeno Príncipe.
- Me prometa que não vai engolir poeira à toa, nem escalar aquele guarda- roupas velho.
- Hahahhahahaahha!!! Tá bom.
- Um beijo, meu amor.
- Pra senhora também.
- Tchau.
- Tchau.

Não botei muita fé na promessa da pequena. Que Santo Anastácio sempre lhe proteja nas suas travessuras.

Tia Cecé
Recife, 12 de outubro de 2013.

8 comentários:

  1. FELIZ DIA DAS CRIANÇAS a todos os meus amigos de infância, especialmente aos de Tamboril, representados pelas pessoas HISTÓRICAS citadas nesse texto maravilhoso! Beijos no coração...

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  2. Beijo grande, Ivaneide. Saudades de você, querida.

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  3. Delícia de ler e mais delícia ainda você contando essas histórias, já fui pra Tamboril algumas vezes através de ti, eita lugar querido que te trouxe pra nós.
    Cheiro minha flor.

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  4. Que delícia, tia Cecé! De deixar a alma mais leve...

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  5. Tia Cecé só não é "leve" dando aula, né, Luiza? Saudade de você, bonitinha.

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  6. Tia Cecé dando aula é um perigo!!! Saudades, estarei na sua platéia em Recife.

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  7. Delícia! Chegue prum abraço todo sujo de barro.

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