domingo, 16 de fevereiro de 2014

Elisa e eu


Construindo uma nova criatura. Desta vez para o cinema. Seguindo as indicações do diretor André Valença, vou descobrindo o que não está escrito. Chega uma hora que de tanto procurar, a criatura ganha meu corpo e me segue pra todo canto. Vem pra casa comigo, tomamos banho juntas, cozinhamos macarrão, ouvimos música, dançamos, admiramos quadros de Alexandre Cabanel e Félix Vallotton...
Dormir, não dormimos. De madrugada é quando ouço melhor a sua voz. Ela própria me soprando sua história. A que ninguém vê, mas está lá, entrelinhas. Quer saber um pouco?

Estudo e construção de personagem por Ceronha Pontes.

Exercício n° 1 (trecho)

Elisa: 
Herdei de minha tia avó o nome de Elisa. E também esta casa velha onde me escondo da aporrinhação do resto da família. É um tal de querer saber porque que eu num me casei, porque que eu num tive uns pirráia... Oxe! Num tive pirráia, porque pirráia só serve pra deixar a gente encaralhada. Nun quis, num quero.

Exercício n°2 (trecho)

Elisa:
Aí eu me revoltei e falei direto com Deus: olhe, castigada eu tava era quando não sentia. E pronto. Daquela vez em diante eu merecia. Merecia, sabe? Merecia.
Eu num sabia que era tão bom brigar com Deus. Chega eu fiquei mais bonita. Quando foi que me achei bonita mermo? Agora eu termino aqui toda descabelada, toda malamanhada e quando me olho no espelho, me acho é bonita. E digo outra: comecei a ter ideia. Sabe menino pequeno que brinca, inventa as coisa? Então... Eu nunca brinquei. Agora eu brinco, tenho ideia. Outro dia eu fiquei pensando que se botasse um vento, sabe? Me deu vontade dum vento...

Exercício n°3 (na íntegra)

Elisa:
Depois desse movimento aqui em casa eu ando mais disposta, sabe? Vontade de arrumar as coisa, me arrumar também. Só um pouco, né? Outro dia passei até batom. Uma delas deixou por aí um toco de batom, eu passei com o dedo mermo. Já fiquei diferente, achei engraçado. Saí na rua me sentindo a Carmem Miranda com aquela ruma de fruta na cabeça, só por causa dum batonzinho, vê?
Na casa fui bulindo uma coisa aqui, outra ali. Joguei fora uma ruma. O quarto dos fundos era cheio dumas caixavéia. Tia Elisa juntava era troço. Numa delas tinha uns livros velhos, uns cadernos e uma caixinha menor cheia de lápis. Tudo com a ponta grande bem feitinha. Tinha umas página marcada nos livro. Tia Elisa era mulher letrada, visse?Por isso mais que o povo achava ela esquisita. Minha Vó dizia que mulher letrada demais num arruma marido. Pois sim. Tinha uns negócio que se minha mãe lesse, num ia prestar não. Ela descia o cacete mermo em Tia Elisa. E minha Vó? Morria. Uma história comprida de uma tal de Filó¹. Diz que é fada, mas sapata. Bulia com as mocinha, as boneca... Olhe, é muita resenha, muita esculhambaçao essa fada. Safada chega me deu um negócio. Era duma escritora chamada Hilda. Depois eu vi a foto dela noutro livro. Uma véa que vivia sozinha com uma ruma de cachorro. Igual a Tia Elisa, só que sem os cachorros.
Nos cadernos Tia Elisa ia de receita de bolo a poesia. Umas de dar tremor nas parte, sabe? Outras de doer o peito. E tinha uma parte que era de música. Escrito o nome "música" em letra de forma grande. Algumas com o nome dos cantores, outras com o nome de Elisa. Tia Elisa era ou num era cheia de surpresa? Já num me admira que um pedaço de chão de sua casa dê esse negócio na gente. Das músicas eu gostei mais de uma italiana². Eu sei porque a gente sabe que língua é mermo que num fale. Depois num sou ignorante não. Vivo aqui desse jeito porque essa é minha vida e pronto. E também era uma que a própria Tia Elisa gostava de cantar baixinho. Eu merma ouvi muitas vezes.

(Canta um pouco. Silêncio. Olhar perdido.)

Depois tem o jardim pra ajeitar. É pequeno, mas pode ficar arrumadinho. Vou plantar umas roseira e um pé de acerola.


Elisa em processo, por Ceronha Pontes.

Notas:
1- Filó, a fadinha lésbica- Hilda Hilst.
2- Senza Fine- Gino Paoli.


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