Camille, Ceronha e
um hino à liberdade
(Eu não disse que ia me arrebentar?)
Fui ver Camille Claudel, no teatro da Cultura (RioMar). É gente demais neste shopping, meu Deus! - me dizia, enquanto ia caminhando para a parte de cima da livraria, que também estava movimentada, porém com outra gente, uma gente mais encantada e silenciosa. Havia um convite à minha espera, na bilheteria, mas não quis, eu preferia mesmo pagar, porque já se faz arte com tanto sacrifício neste país e, além do mais, Cacilda Becker parecia estar me soprando ao ouvido a frase que usou para dizer não àquele povo acostumado com primeira fila a custo zero: "Não me peçam para dar de graça a única coisa que tenho para vender".
Sentei em uma das mesinhas do café, ainda tinha tempo para "um quentinho" antes de abrirem as portas. Queria entrar no clima da peça, era preciso. Villa-Lobos disse que seria possîvel ouvir apenas o que quisesse, independentemente de onde se achasse, então liguei minha vitrola interna e escutei Piaf cantando La vie en rose. Ah, Paris ...
Minha poltrona era central, na terceira fila. Uma fumaça de gelo seco e as luzes do palco semi-apagadas mal permitiam divisar o cenário composto por mesinha e cadeira brancas com efeito de pátina, alguns poucos objetos; no fundo, uma plataforma elevada e coberta por grande quantidade de barro vermelho, além de uma escada de dois pés, à frente. Só.
Luzes apagam, a voz de Ceronha (em off) lê uma das cartas que Camille tentou, em vão, fazer chegar aos amigos e à família enquanto esteve (compulsoriamente) distante do mundo, num sanatório.
Um foco de luz se acende sobre a mesinha e lá está ela, a "musa de Rodin", olhando demoradamente para o vazio, como se não existisse plateia nenhuma. O texto arrasta o espectador para o cativeiro de Camille como se a intenção fosse torná-la menos abandonada e miserável na sua condição de morta-viva.
E de repente, o desvario da personagem leva Ceronha à plateia, onde olho no olho, segurando desesperadamente as mãos do escolhido, pede que entregue a carta salvadora, esmagada pela força do gesto, a um parente ou familiar. Noutro momento, delirante, distribui cerejas, a fruta mágica que acompanhou seus melhores dias em Villeneuve, sua Villeneuve.
A plateia mal respira, em alguns trechos a narrativa é muito lenta e o jeito é se mover devagar na cadeira, talvez porque, inconscientemente, se ache que o gesto pode arrancar Camille do torpor, abrindo-lhe as portas para a tão sonhada liberdade.
Choro enquanto Ceronha é o desassossego em pessoa sobre a pequena montanha de barro, onde se impregna dele até a alma. A alma de Camille era de barro. E a atriz, em dado momento, ao trazer a expressão de vazio que revelava uma Camille vencida, parece se transformar numa das esculturas que, apesar de Rodin, fizeram da artista uma das mais festejadas no mundo, pela genialidade extrema.
Ao final, a voz de Ceronha (em off) revela aos expectadores que apesar dos maus-tratos diários impostos pelo sofrimento de se saber desligada do mundo, Camille continuou viva durante 30 anos. Certamente porque ainda sobreviviam em suas mãos a memória da arte poderosa, as manhãs e o sabor das cerejas de Villeneuve.
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