segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Dodói de Paúra


Medos demais para um corpo mirrado de idade pouca. Já um bocado de cicatriz desenha a sua vidinha recém começada.

Dizendo a Bisa, desde a primeira vez que a bichinha arregalou os zóio deu-se logo conta do que lhe faltava. Não é braço nem perna, não senhor, que tem o par de cada e é toda bem feitinha. Faltou foi ver na cara da Mãe que ali era abrigo seguro. Neném mal se bulia temendo escorregar daqueles braços frouxos. Espalhou-se a visão quando o vigor de outra mão livrou-lhe toda a cabecinha da manta de lã que a encobria. Ao ver o Pai, pobrezinha, mijou amarelo-gelado e sorriu.

-Essa não demora a falar. Benza Deus, Ave Maria! Assim pichititinha já é escrita o povo do vô dela, tudo metido a inteligente. Melhor nem conversar de certas coisas. A danada pesca no ar.

Ah, o jeito resmungão engraçado da Bisa preservar inocente sangue seu! Fora que eu sempre achei bonito isso de "pescar no ar" pra dizer da intuição apurada. Entrelinhas por onde caminharia a pequena de coração na boca e pernas bambinhas. Com a sua varinha invisível foi mesmo fisgando no vento a silabinha, palavrinha, frasezinha... Lamentos inteiros de estarrecer Bisavó.

Segredos noturnos:

-Vó, eu tenho um dodói bem grande, bem feio que dói muito, muito, muito. Fica na parte da gente que gente não vê.

Alminha lacerada a golpes de PapaiMamãe.

ELA, movida a riscos, viciada em perigo, desafia no verbo e conduta até desmaiar de porrada. Aí é festa. Grita o vizinho, late o cachorro, soa a sirene... Festa! Festa!

ELE...

Desabou da mão a pena. Faltou sangue frio no tinteiro. O que quer que escrevesse findaria com um amargo e desesperançado IM-PU-NE.

Outra noite:

-Vó, vamo fugir pra uma casinha escondida? Só nós duas.

A proposta fez da velha o puro instinto, e quando os gemidos da porta anunciaram o perigo paterno, ela se levantou como quem fosse matar ou morrer. A pequena voou com as mãozinhas, atracou-a pelos remendos da camisola e ordenou baixinho:

- Fica quieta, vovó, fica quieta! Não diz nada que é pior. Não diz nada e faz assim.

"Assim" é o riso amarelo-mijo, apavorado de nascença.

Noite após noite a criança e a velha abraçadas, desvalidas, inundando o colchão com as lágrimas densas de um choro que de tão silencioso, eu escuto.


CERONHA PONTES
Recife-Pe, 02 de agosto de 2010



3 comentários:

  1. "lágrimas densas de um choro que de tão silencioso, eu escuto"...

    ResponderExcluir
  2. È minha prima sei muito bem como é essa lagrima,eu escutei por varias vezes,é uma pena não podermos fazer nada,infelizmente é escutar silenciosamente e acreditar q um dia tudo vai melhorar!!!Deus é Pai!!!

    ResponderExcluir