terça-feira, 29 de novembro de 2011

O insuportável mau cheiro da memória*



Poeta Carlos,


Tu, que lá nos meus tenros anos te tornaste o amigo verdadeiro que de um tudo me explicava, para tudo me preparava, feito fosse mensageiro do meu pai distante, ainda que presente, perdoa o descuido "daquela mocinha". Não por maldade arredondei-te a capa dura. De tanto carregar-te comigo, foram gastos os cantos, desbotada a cor, mas, nunca desdenhada a poesia. Ah, o meu livro vermelho*, quem escreveu foste tu, Poeta Carlos! Vermelho-fubá e troncho, ainda e sempre inspirador. Revolucionário.
Nem por desamor, tu bem sabes, doei-te quando precisei que o barco ficasse mais leve. Seja feliz quem te encontre, oh Poeta, naquela comunidade. Possam descobrir em si desejos tão grandes quanto os que em mim promoves, e que se movam mesmo por eles, tanto quanto acredito caber o mundo no meu peito.
Sou, por tua amizade, eternamente agradecida, e nunca me reconheci em algo sem que me lembrasse de tua Canção Amiga*. Por isso te escrevo. E havia tanto tempo não é? 
Te escrevo  por  Mary e Max (filme de animação do Adam Elliot). Depois por causa de O Jardim (peça de teatro do dramaturgo e diretor Leonardo Moreira). Por fim, outro filme, Meu País (de André Ristun, com Rodrigo Santoro, Cauã Raymond e Débora Falabella).
Sei, Poeta, e saberei mesmo quando o Rinoceronte se esquecer completamente do Girassol*, que nem todo aquele que está longe dos olhos cala ao coração. Há pessoas que, não importando quantos anos ou oceanos as separem de nós, nos salvam. Sei.
Enquanto há aquelas que a natureza atira, sem explicação convincente, no mesmo "jardim". "Crescei e se multiplicai-vos", debocha. Amor condenado. Também sei.
E é mesmo significativo, amigo Carlos, que te escreva aqui do meu Torrão (do "Meu País"), contando esses lances. Olha, Poeta, não foi fácil. Quando o filme começou, num horário classificado como sessão de arte, foi me dando um sono... Até depois da metade ainda me perguntei, com uma ponta de maldade, porque diabos tudo o que é sombrio e enfadonho ganha status de filme de arte? E não sei exatamente quando "a coisa" me pegou de jeito. Acho que desde o primeiro instante tudo estava anunciado, mas era tão difícil de digerir. Sabe quando as semelhanças são coincidências de uma tal infelicidade, que é melhor dormir? No fim, guardando um choro muito meu, fui até capaz de gostar da Ana Carolina que cantava enquanto subiam os créditos.
Aí me deu uma vontade de falar contigo, Poeta, de cantar contigo um bregão francês. Vontade, meu amigo, que tu pudesses agora, tanto quanto me ensinaste a suportar a juventude longe de casa, me ajudar a aceitar reaproximação sofrida. Indesejada, até, nos moldes em que se apresenta. Dever exige serenidade, Poeta. Ah, vamos abrir os vidros de perfume!



J'avais dessiné sur le sable
Son doux visage qui me souriait
Puis il a plu sur cette plage
Dans cet orage, elle a disparu*


Agora bem alto, Carlos!, que é pra espantar "o insuportável mau cheiro da memória".



Et j'ai crié, crié, Aline, pour qu'elle revienne
Et j'ai pleuré, pleuré, oh! j'avais trop de peine*
...
...
...


Os bons aromas convidam já, meu caro amigo. Enxuguemos o rosto. Vais gostar de encher a pança com o feijão da Tia Z, servido mesmo no velho fogão à lenha da casa da Vovó. A propósito, a Vó é poema que jamais saberei escrever. Te atreves?


Ceronha Pontes (Cecé).
Tamboril-Ceará, 29 de novembro de 2011




* Verso de Resíduo, poema do Carlos (Drummond de Andrade).
* Aos 14 anos veio o meu primeiro Drummond, numa coleção chamada Literatura Comentada, cheia de outros autores que me marcaram. Drummond, cuja poesia me afetou para sempre, tinha a capa vermelha. Aqui, uma brincadeira com o Livro Vermelho, de Mao. É que só me deixo levar por homens como o Carlos.
* Poema do Carlos.
*Os anônimos. Amigos "esquisitos" cujas histórias desconhecemos, mas que se fizeram tão bem quanto Mary e Max. Mesmo os que  não conseguiram cumprir a promessa de durar para sempre, ou até que estivessem velhos, discutindo a qualidade do fraldão. Mesmo estes.
* Aline. Canção francesa bem 'batida" e que nos deixa a todos com lágrimas nos olhos quando embala as lembranças dos personagens de O Jardim.

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