quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Sobre não morrer

Para Luce Pereira

Querida Lucille,

Hoje Ela cantou. Pareceu-me que não se dava conta de que o fazia, mas, cantava, e isto me trouxe a esperança que ora divido contigo. Depois começou a recitar aquele teu "Um tango com Frida Kahlo", experimentando involuntariamente um gestual que diz mais da outra Criatura. Confuso assim: a fala de uma no corpo da outra. Em tudo, Ela.
Tanto a do Tango quanto a francesa, apartadas de seus dons, desfalecendo em ambiente desfavorável. Vê-se assim.
Bem quando vomitava aquilo sobre "que dissolvessem com golpes firmes o (seu) meu delírio pelos...", acordou. E chorou. Não, querida, talvez não fosse apenas desesperança. Eu mesma me lembrei de um teu choro bom, quando daquela que consideraste a melhor exibição do Tango. As condições do teatro naquela cidade em que Ela sempre odeia se apresentar eram tão ruins que Ela chutou o balde, como gosta de dizer, tentando superar as adversidades entregando-se de um modo que a aproximou tanto daquilo que concebeste, que tu choravas, Lucille, fazendo-a  gabar-se por atingir momentaneamente a compreensão plena da (antes tua) Criatura.  Ela bem sabe (e por isso não se furta de vivê-los) que esses instantes são raros, Lucille, porque milagrosos. O lugar em que Ela está agora se encontra tão completamente arruinado, que só por milagre mesmo se levantará, Ela crê. Tenho vontade de dizer a Ela sobre os benefícios do tempo, mas, é melhor esperar o tempo certo de fazê-lo.
Não sabe ainda como ser mais forte do que alguma vez. Porque agora não é artifício, querida, e Ela dói a ponto de não reconhecer os recursos para lidar com tragédia tão real. Sente e pensa as coisas mais feias. Deixemos. Precisa.
Entre vingados e fodidos, figura entre estes últimos, e não há outras classificações para os envolvidos em tão dolorosa questão. Fodidos. Ela gosta de palavras baixas. Eu também. Digamos. Preciso.
Mas, Lucille, o real motivo desta carta (escrevo com aquela caneta que touxeste de Nova Iorque e deste a ela quando trocavam contos "galeânicos " por fantásticos, e lamento que chegue a ti em letra impessoal e fria) é que hoje Ela cantou. A voz era triste, a música nem sei, mas, não importa. Cantar não te parece um bom sinal? Sempre lembro do cara do Pavão Mysteriozo dizendo que isto parece com não morrer. Creio absolutamente e sei o que vai em ti, a respeito. Por isto o comunicado: ELA CANTOU.
Abraço meu. E dela. Se pudesse.

Charlotte.

P.S.: E eu que pensava que não apareceria por aqui tão cedo. Me diga, Lucille, como imaginas o cenário, quando é Charlotte quem se revela a mais lúcida? (Risos.)

Por Ceronha Pontes
De Tamboril-Ce, 28 de Setembro de 2011.

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