segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Fulana Feliz

Qualquer coincidência terá sido mera semelhança.

O marido morreu. Criou doze filhos arriscando inverno que lhe rendesse algumas poucas sacas de feijão e milho extraídos do pequeno roçado familiar. Em tempos de seca, nem me pergunte.
Das sete meninas até as calcinhas eram doações. Usadas e descartadas por outras abastadas. Enquanto os meninos dividiam dois pares de alpercatas, fingindo doença no pé que ficasse descalço. Só mesmo Zequinha tinha os dois completamente nus correndo no terreiro.
Nasceu doido. Doido bem mansinho. Sabe doido carinhoso? O Zequinha. Ele e a mãe eram dotados de uma alegria absurda ao meu entendimento. A mulher feliz e seu menino doido me enfeitiçavam de um jeito que por pouco acreditava em Deus. Não acredito. Não quero acreditar. Eles é que precisam. E o encontram.
As meninas, bem, era botar peito pra embuchar. Feito bicho mesmo, sem culpa nem frescura. Assim os meninos, tanto lhes desse o "frivião na rola" quanto emprenhavam semelhantes desgraçadas. Desgraçadas digo eu, caro leitor, cheia de olhos.
Multiplicando-se na indiferença, eram salvos... Me castra a obrigação do politicamente correto. Ora, fôda-se! SALVOS PELA IGNORÂNCIA. Está dito.
Fiquei mortinha de vergonha quando o ego, inflado pelo espírito natalino, me arrastou certa vez para lá carregando um panelão de sopa e uns panetones. É querer comprar muito barato um alívio qualquer pra uma culpa que eles nem me creditavam, pois desconheciam. Sua felicidade era meu vexame. Eis que a Boazinha (eu), com uma sede de Mamãe Noel (mandaram Zequinha dizer), recusou-lhes a água barrenta da cacimba. Não voltaria ali.
Quantos serão hoje em dia? E porque eu comecei a falar dessa gente? Ah, foi a mãe deles que me feriu a memória. Dona Fulaninha. Nunca uma palavra feia, nunca expressão nenhuma de rancor. Sempre riso, sempre amor, sempre certa do que a vida vale. Pensando nela, ao menos por hoje me desocupo de minhas frustraçõesinhas. Tudo tão inha, né? O forinha, a saudadesinha, a dorzinha, eteceterazinha. Vê, fica é bonito pensar na amígdala ( Dona Fulaninha, a senhora sabe o que é amíGdala?) como uma flor cujos espinhos me invadem e rasgam o ouvido. Porra, muito bonita a minha doencinha!
Ô Dona Fulaninha, foi de quê mesmo que morreu Seu Fulaninho?

Ceronha Pontes
Recife, 29 de novembro de 2010

domingo, 28 de novembro de 2010

DESAPARECIDA


Emerge a cabeça parecendo mal-assombro. Olhos esbugalhados e fixos. Indaga:

Velho - A menina já voltou?


Há quanto tempo ela responde sem acreditar?

Velha - Mais tarde.

Mais triste, o velho afunda a cabeça na rede encardida. Talvez fosse choro aquilo que se ouvia.


Ceronha Pontes
Recife-PE, 28 de novembro de 2010

sábado, 27 de novembro de 2010

SILENCE

Sob que disfarce me visitas? Ah, ilusão de que o faças!
Enquanto murcham os girassóis.
Ceronha Pontes
27 de novembro de 2010


extra silêncio:

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

ALICE


Lá do alto, pesando um mundo todo, Alice deitou no vento.
Agora dorme.
Ceronha Pontes
Recife, 25 de novembro de 2010



lua congelada:



sexta-feira, 12 de novembro de 2010

CONFISSÕES DE ÂNGELA


Eu bem gostaria de ainda achar encantamento em dor de amor. Desembestar mais doida que a cidade, ameaçar um poste, um viaduto, um inocente. Justificar venenos e canções. Over ilícita, morri de não sei quantas doses, ressuscitando invariavelmente em braços estranhos. Tanto queria este, que morria com aquele. Ou aquela. Nunca fui de frescura.
Rastejava fina, toda embriagada na poesia. Este mau serviço prestei ao mulherio. O sujeito a quem eu desejasse ficava com o ego de tal modo inflado que ainda hoje tem a mania feia de fazer sofrer a quem lhe ama, só pra ver se do mato sai alguma coisa que lhe valorize o currículo.
Sei de um que guarda trancado em cofre um antigo bilhetinho meu, escrito à álcool e desespero. Imaginem! Decerto para que o encontrem quando, depois de morto, vasculharem seus pertences. Deixar como última impressão a de que foi amado. O que envaidece mais a pessoa do que não corresponder ao amor de Ângela? Fosse ou não fosse verdade, está lá bem escrito e o diabo é quem vai duvidar. Amado. Por mim, se dêem a importância que precisam. O que me custa? Sinto é falta. Era divertido. Ah, se ainda soubesse como é que desatina! Triste do fim sem zoada.
Perdi a vocação pro abalo quando o Fulanim, sem um pingo de sal, se abancou na minha vida feito o terceiro da Terezinha de Chico. Como é que pode o verdadeiro amor vir embalado com tão pouco glamour? Não rende uma travessia pro lado de lá da razão.
Bom era a fissura, pulso dilacerado, voar de um precipício, pilulinhas me fazendo carreira na goela. Acode! Valia até tuberculose.
Agora assim, o sofrimento pianinho, a fé no futuro, agradecida pelo tempo que durou? Ah, isso já é demais! Mané Fulano me paga pelo estrago.

CERONHA PONTES
Recife-PE, 12 de novembro de 2010


Salve Gainsbourg!

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Além de aqui


PRIMEIRO ATO

Marizé- Jacinto, é sobre este aroma sutil de qualquer coisa que eu conheço mas, esqueci. E não é a primeira vez que chega açucarado o teu sorriso num rosto ameninado luminoso. É um menino que me toca, quando voltas. Menino, Jacinto, das mãos suaves, nervosas. E de ti menino eu não esqueço. Eras o mais estranhamente gentil destas paragens. Único que adivinhava o além de aqui sem nunca ter estado lá. E que tornava a vida mais bonita do que de fato alguma vez tenha sido. Agora que de verdade conheces outros mundos, me diz, este perfume, este sorriso, de onde vêm?

(Longo silêncio. Marizé segura-lhe as mãos, encorajando-o.)

Jacinto- Aos teus pés por toda a minha vida, mesmo que a tua natureza, que é de pouca fé e fastio de viver contrarie a minha, que tem fome de alegria. Indiferente, cresce o meu amor por um mistério tal que há em ti e me fascina, ainda que mate. Crê, definho se não me salvo, às vezes, de tua solidão, de não me ver em ti. Além de aqui... (Pausa). Não te amasse, voltar não seria preciso.

Marizé- A tua ausência é inverno impiedoso. Meus ossos doem como se congelados. É quase morte.

Jacinto- Tu foste entristecendo, desistindo um pouco a cada dia. Vivo a perscrutar o teu mistério, a tua dor, o teu desejo (se o tens).

Marizé- Se me alcançares, por Deus, me livra desta agonia de não saber o que me faz assim.

(Longo silêncio.)

Marizé- Sobre o que trazes do além de aqui...

(Jacinto se levanta bruscamente e vai até a janela. Marizé insiste.)

Marizé- Alguma familiaridade eu tenho com isto mas, não entendo.

(Jacinto permanece de costas apoiando- se na janela. Morreria pra escapar dali. Chora os rios que represou ao longo de anos e quando se volta para ela, arrisca tudo.)

Jacinto- Não sou de ti apenas. Ouviste? Conheço o amor também por outro nome.

(Se olham como se fosse a primeira vez.)

Marizé- É menos triste?

Jacinto- De outro lugar. É doce, é simples...

Marizé- Perfumado e luminoso o teu amor de lá.

Jacinto- É sim.

Marizé- Quem?

(Ele respira fundo.)

Jacinto- Antonino.

(Indecifrável o semblante de Marizé.)

SEGUNDO ATO

(Marizé sob um sol que agora brilha mais que em "além de aqui", dentro de um vestido largo, longo e florido, os cabelos dourados derramados até a cintura, sombreando os olhos com a mão, avista-os. Corre para encontrá-los. Vêm os três entre carinhos e brincadeiras e palavras que assim de longe não escuto, mas posso adivinhar. E não que precisem do perdão do mundo, mas por uma gentileza própria dos que cumprem o mais honestamente a sua natureza, é Antonino quem explica.)

Antonino- Tem quem venha só. Ah, como tem! Tem quem venha aos pares ou, como nós, aos três. O mundo é cheio de gente, minha gente. E de todo jeito há. É bonito.

Senza fine.

CERONHA PONTES
Recife-PE, o8 de novembro de 2010.

extra nonsense:

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

O JARDIM



Margarida que amava Marcela que amava Tulipa que amava Azaléia que amava Jasmim que amava Papoula que amava Magnólia que amava Margarida que morreu de over dose.
(me inspira a Quadrilha do Drummond)




Real tristeza futura adivinhada hora bem de partir a outra e ela que sofria, sofria, sofria...
Nunca mais! bradava trágica girando espaço pequeno escuro de fumaça NUNCA MAIS!
Agora "minha" flor café bolo fubá e fruta fresca de sobrar felicidade até um dia antes dos cacos no pé branquinho quebrado sangue amou tudinho quase e quase morrerei do arrepio não te ter como te falta aquela amou talvez pouquinho e pago tudo com o que não tem fim, ouviu? pago de cortar pro resto de viver sem fim tormento te perder ferir.Ferir.
Entra branquinho aspira desce golinho transparente amor fodido se não vens virá o fundo lá não ser será felicidade um oceano basta de cegar o branco a luz a luz a luz a luz a luz afoga vou...

CERONHA PONTES
Recife, 04 de novembro de 2010

extra torpor:

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Sem...


Talvez teu pai. Mas, é morto. Agora, e tua mãe, porque diabos tampouco se importa contigo? Que é de teu filho com aquele? Como é que de menino se escolhe não ter mãe?
Quando me amas, me iludo de que aquilo que sentes é tão vigoroso quanto o que me move. Mas, é acordar pra morrer de vergonha. O que há de mais constrangedor que despertar ao teu lado? Nu, sobretudo. Tu és tão de ti mesma, mulher!
É quase obrigação de quem te ama, te deixar. De outro modo, como escapar da insignificância que corrói lenta? E mata.
Um movimento teu...

(Longo silêncio)

Se desperdiço esta lufada de dignidade nunca mais respiro. Eu vou.

(E também ele a deixou. Não que ela não tenha tentado a palavra não dita mas, tinha como verdade irrevogável o respeito à liberdade. Não ousaria impedir que decidisse por si mesmo quem quer que fosse o outro.)


CERONHA PONTES
Recife, 02 de novembro de 2010


extra de luxo: