quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Sinta o peso










“O poeta é o contemporâneo da sua vida toda. Dos acontecimentos de que ele não tem a lembrança, tem o pressentimento”.
Paul Claudel





Feitas de gesso aquelas Brancas de Neve em série, com todos os Dungas e Zangados, a Mãe embalava em caixas de papelão e mandava enfeitar quarto de criança nas cidades vizinhas. Era boa também nos trabalhos em pelúcia. Uma bicharada linda de fazer sombra em boneca da Estrela.

E os bolos confeitados de encher mais a alma que a barriga? Coisa de conto de fada! Castelos de açúcar com janelinhas de abrir e fechar, por onde vazava luz pra gente se admirar. O Pai que fazia a instalação. Sem contar que era gostoso. Recheio de goiabada misturada com um pouco de vinho tinto. Teve uma noiva de outro município que afirmou aos seus convidados que o bolo de casamento tinha vindo de São Paulo. A mãe ficou triste. Não lhe pagar devidamente já não era concessão o bastante? Precisava lhe negar o crédito? E porque em Tamboril não se podiam produzir encantos assim?

Também pintava. O Pai pedia um quadro com a paisagem mais bonita da cidade. A Serra das Matas e o Rio Acaraú vistos de cima da ponte da Vila Olga. Depois que a Mãe registrou, veio a enchente que mudou o cenário pra sempre.

Os esqueletos de arame impressionavam mais. A Mãe os envolvia cuidadosamente com pedaços de gaze ou estopa embebidos em gesso. Modelava, modelava... Depois de seco, raspa daqui, corta acolá, o chiado da lixa, o pó se espalhando pelo chão vermelho da casa (sujeito a pegadas de menina pequena), até que surgiam perfeitos os braços, as mãos expressivas de dedos delicados dos santos encomendados.

Qualquer coisa virava ferramenta pelas mãos da Mãe. Cavoucava o bloco de gesso até saírem vivos os rostos com olhos que, juro, brilhavam. E bocas de ameaçar segredos.

O trabalho que entortou os dedos da Mãe era pesado, mas delicado, demorado e de natureza tal que a “criatura” se tornava mais um da família. Quando pronto, aperto no coração. O “dono” vinha buscar. Quase sempre a Mãe (figura tão delicada!) explicava que não era santo de fôrma, feito os dessas lojas de artigos religiosos baratinhos. Era santo esculpido. “Aqui deu trabalho, moço. Sinta o peso. Isto não é santo oco”. Negocia daqui, negocia dali e o “dono” levava por uns trocados de ajudar o Pai.

Houve um 13 de Maio em que a Mãe fez pra Escola a pintura de um negro no tronco. O material era bem simples: cartolina e tinta guache. “Mãe, isso tá um borrão”. A Mãe ria: “é esboço que se diz, minha filha”. Desconfiada: “é só uma mancha marrom”. A Mãe ensinava: “paciência”.

A figura do homem torturado, banhado de suor e sangue só apareceria depois de muitas e cuidadosas pinceladas, praticadas com sensibilidade, amor e... PACIÊNCIA. Menina dos olhos cheios d’água com a dor do preto retratado. A dor que a Mãe entendeu, imprimiu. Era terrível. E magnífico.

Mais tarde posaria ela mesma. Nem foi sacrifício. Gostava já de ficar quieta, à espreita, alerta, pronta pra ver. Está lá na casa de Tamboril a Nossa Senhora da Conceição (acreditem!) esculpida com os traços da menina. A Mãe cuida.

Para sempre guiando meu labor artístico estas primeiras “lições”.

Ceronha Pontes
Recife-PE, 26/10/2010

10 comentários:

  1. Suas palavras afagam o coração da gente! Que bonita homenagem!

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  2. Borboleta querida, tu é que me afaga com tua presença. Olhe só, mamãe tá terminando um Buda pro Eros, meu marido. Tá ficando lindo, tenho acompanhado por fotografias enviadas gentilmente pela Eda, minha prima.Certeza de que ela ficaria muito feliz em te mostrar. Passe lá na casa da Vovó, qualquer dia desses.Beijos e seja sempre bem-vinda.

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  3. "Mãe isso tá um borrão".A mãe ria: "É esboço que se diz,minha filha".

    Mesmo na reprodução mais perfeita um elemento está ausente: O aqui e agora da obra de arte,sua existência única,no lugar em que ela se encontra.

    (Walter Benjamin)

    Só pode encontrar o sentido da obra aquele que a destrói,e só quebrando a obra em pedaços é que ela se transforma no fragmento de uma obra verdadeira,assim ela é um torso de um símbolo e se transforma em alegoria.

    bjs.

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  4. lindo, lindo, lindo.. vieram lágrimas aos olhos e voltei às minhas festinhas de bolo com casinha de chiclete.. apego, né, mas, fazer o que? beijo, paz e luz!

    Karine

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  5. "Eu tinha dois ou três anos ,não lembro muito bem,minha mãe me contou."
    (Graciliano Ramos,Infância)

    A memória autobiográfica tambem é ficcional,mas necessita de um esqueleto da realidade que sirva de âncora para eventuais desvios das fantasias.

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  6. No tempo desta fotografia, era diversão minha passar horas na casa da rua Benjamim Constant olhando braços de gesso, mãosinhas de Anastácio, tubos de tinta e pilhas de revistas do Instituto Universal impressas em papel jornal. Eu não sabia ainda o que rea Disneilandia, mas era assim que eu me sentia.

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  7. Um poético registro de memória,coloquei-me na questão e vi-me criança ao redor da MÃE ,desta feita a MINHA e alegrei-me! Axé tua Nena

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  8. Linda a homenagem!!Eu tive oprazer de conviver com tudo isso(Gesso,bolos,santos...Dijesus me ajude segure o santo! Amo vocês

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