segunda-feira, 16 de agosto de 2010

OS CUTES





O que a vista turva do Vovô alcançava da cidade, com o Monte Feiticeiro ao fundo.






Aos meus primos, com amor.

PARTE I

Surdo Feiticeiro

Bem ao fundo, na parte coberta do alpendre, Vovô em sua cadeira de balanço, daquelas enroladas em macarrão de plástico azul-fubá. Horas ali. Provavelmente agradecendo aos céus a imponente paisagem que lhe invade a morada.
Enquanto pipocam bisnetos pelo casarão. Parecem brotar das dezenas de janelas, multiplicando-se nos quilômetros da meia-parede que circunda toda a área de serviço, dependurados na goiabeira e pé de siriguela do meio-mundo de quintal. Se duvidar tem menino se equilibrando até na vara de pendurar carne seca.
De repente um deles atentou para a figura do Biso e, comovido com o próprio destino anunciado no rosto do velho pai do pai do seu jovem pai, perguntou:

- Vô, o senhor é feliz?

- Hein?

-Vôôô, o senhor é feliiiz?

- Heeein?

Aliviado, o moleque riu de dobrar o pescoço suado revelando o ceroto das dobrinhas e saiu correndo juntar-se aos outros.

Um de frente pro outro, em respeitoso silêncio, garbosos, eternos...Vovô e o Monte Feiticeiro.


PARTE II

Na Lata

Vovó em seu trono instalado na parte mais disputada do casarão: a cozinha. Ali recebe a cidade e se atualiza dos acontecimentos todos. Está sempre bem dizer on-line com o mercado, repartições, escolas... Sabe tudo e tem opiniões tão sensatas quanto divertidas acerca do cotidiano de nossa gente. Tia Zélia regalando as visitas com receitas impraticáveis por mortais comuns, torna ainda mais cobiçados os encontros com Dona Totonha. De medicina natural a ciências políticas a Vó destrincha. Do alto de seus noventa e tantos, é rainha absoluta no comando de nossas vidas.
Pariu quase duas dezenas e seu maior orgulho é que "nenhum deu pra ruim". Entre netos, bisnetos e tataranetos perdi as contas quando chegávamos aos sessenta.
Outro dia, dividida entre o crochê impecável e o noticiário do rádio, dava-se ao apreciar de um bisneto abismado com suas habilidades. Quando recuperou o sustento do queixo o garoto perguntou interessado:

-Vovó, será que eu vou ficar "veim" assim que nem a senhora?

Sem desviar a vista do laboro ela responde na lata:

- Se você tiver muita sorte.


CERONHA PONTES
Recife-PE, 16 de agosto de 2010.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Aspetti, signorina...


Bem me lembro...

A paixão ainda lhe turvava os sentidos quando ele chegou, e isto explica que não o tenha reconhecido imediatamente. Embora vocacionada para o além-óbvio, dotada de canais especialíssimos onde domina o sutil, estava de tal modo obstruída que só alcançava as sensações mais grosseiras. O que a ela atormentava prometia cegueira de atravessar encarnações. Ele a esperaria.
Um dia, afinal, por tanto e sincero esforço de ser inteira, mereceu enxergá-lo. Ele, puro contentamento, revelou-se através de um Giacomo que a encantava. E ela ria, ria, ria...

"Aspetti, signorina,
le dirò con dui parole
chi son, e che faccio,
come vivo. Vuole?
Chi son?
Sono un poeta.
Che cosa faccio? Scrivo.
E come vivo? Vivo."

Aceitaram a eternidade.

CERONHA PONTES
Recife-PE, 12 de agosto de 2010

terça-feira, 10 de agosto de 2010

UM PAI



"Quando colherem os frutos, digam o gosto pra mim."
(Aos Nossos Filhos, Ivan Lins)

Não é o tipo a quem a superfície contenta. Precisou ir longe, muito longe, encontrar o que pudesse deixar como legado à cria. Das suas profundezas voltou com palavras e modos de ser amor em medida tão precisa que parece pouca. E por não ter nada além de um caminho ameno a oferecer, não vale vintém. A quem se destina a sua luta por tornar-se um homem bom, é de tal modo seduzida pelos rococós do desespero, que lhe recusa o sentimento pleno, livre de ornamentos. Amor, apenas.

Segue em paz o Pai.


CERONHA PONTES
Recife-PE, 11 de agosto de 2010

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

AMARGUINHA


Separação.

Aos quatro anos tinha já a Nanica de escolher entre o bicho que pega e o outro que come. Atormenta-lhe a mãe numa última lembrança em que aparece com o irmãozinho, sentados num banco sujo de rodoviária, chorando resignadamente.

Enquanto a menina seguiu com o pai pra um lugar onde estar viva lhe custa as perninhas trêmulas, o coraçãozinho batendo mais que as suas forças e soluços esmagados na garganta de inchaço vermelhão sem cura. Ô carinha de medo pra não desmanchar é nunca! Até que se desespera, a pobre, entregando seus pontinhos à velha, espelho seu.

- Eu não rezo mais, Vovó.
- Deixa de besteira e anda com esse Pai Nosso!
-Tudo coisa ruim esses santos tudo. Essa Mariazinha, o Jesus e esse outro aí encostado no pau.
- Bate na boca cunhã! Tenha respeito com a Virgem, o Filho e o Santo Anastácio.

A merreca de gente se enfia debaixo do lençol encardido, praguejando baixinho.

- Ô, minha filha, chore não. Tenha fé. Ande, venha pedir pro anjinho da guarda.
- Todo dia eu peço, vovó, mas ele nunca leva.
- Não leva o quê?
- O Papai.

Compara-lhe a Bisa com uma banana enfurnada no carbureto, amadurecida à força, na marra. De fato.

- Eu nunca vou ser feliz.
-Isso é lá coisa que diga menina pequena?

Pois diz. É mesmo desse tanto que dói a Nanica. Amargando eternamente o medo e a falta de quem não tinha o direito de botar gente no mundo.


CERONHA PONTES
Recife-Pe, 09 de agosto de 2010

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Dodói de Paúra


Medos demais para um corpo mirrado de idade pouca. Já um bocado de cicatriz desenha a sua vidinha recém começada.

Dizendo a Bisa, desde a primeira vez que a bichinha arregalou os zóio deu-se logo conta do que lhe faltava. Não é braço nem perna, não senhor, que tem o par de cada e é toda bem feitinha. Faltou foi ver na cara da Mãe que ali era abrigo seguro. Neném mal se bulia temendo escorregar daqueles braços frouxos. Espalhou-se a visão quando o vigor de outra mão livrou-lhe toda a cabecinha da manta de lã que a encobria. Ao ver o Pai, pobrezinha, mijou amarelo-gelado e sorriu.

-Essa não demora a falar. Benza Deus, Ave Maria! Assim pichititinha já é escrita o povo do vô dela, tudo metido a inteligente. Melhor nem conversar de certas coisas. A danada pesca no ar.

Ah, o jeito resmungão engraçado da Bisa preservar inocente sangue seu! Fora que eu sempre achei bonito isso de "pescar no ar" pra dizer da intuição apurada. Entrelinhas por onde caminharia a pequena de coração na boca e pernas bambinhas. Com a sua varinha invisível foi mesmo fisgando no vento a silabinha, palavrinha, frasezinha... Lamentos inteiros de estarrecer Bisavó.

Segredos noturnos:

-Vó, eu tenho um dodói bem grande, bem feio que dói muito, muito, muito. Fica na parte da gente que gente não vê.

Alminha lacerada a golpes de PapaiMamãe.

ELA, movida a riscos, viciada em perigo, desafia no verbo e conduta até desmaiar de porrada. Aí é festa. Grita o vizinho, late o cachorro, soa a sirene... Festa! Festa!

ELE...

Desabou da mão a pena. Faltou sangue frio no tinteiro. O que quer que escrevesse findaria com um amargo e desesperançado IM-PU-NE.

Outra noite:

-Vó, vamo fugir pra uma casinha escondida? Só nós duas.

A proposta fez da velha o puro instinto, e quando os gemidos da porta anunciaram o perigo paterno, ela se levantou como quem fosse matar ou morrer. A pequena voou com as mãozinhas, atracou-a pelos remendos da camisola e ordenou baixinho:

- Fica quieta, vovó, fica quieta! Não diz nada que é pior. Não diz nada e faz assim.

"Assim" é o riso amarelo-mijo, apavorado de nascença.

Noite após noite a criança e a velha abraçadas, desvalidas, inundando o colchão com as lágrimas densas de um choro que de tão silencioso, eu escuto.


CERONHA PONTES
Recife-Pe, 02 de agosto de 2010