sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

A vida como ela é, em primeiríssima pessoa.



“...e mais indizível do que todos os acontecimentos são as obras de arte, existências misteriosas, cuja vida perdura ao lado da nossa, que passa.”

Rainer Maria Rilke



Finalmente o ano novo, ufa!

Compreendo os significados, recebo com alegria os afagos e vibro amorosamente, mas, a verdade é que nunca atravesso bem o tal período de “festas”. Me desequilibro inteira. Que desgaste! Pra que tanta aflição?

A correria, o consumo, a comilança, a bebedeira, as declarações de amor. Tudo over. Tudo como se fosse agora ou nunca mais.

Por mim, celebro a rotina. Salve, salve o dia-a-dia, benza Deus a disciplina.

Ver a mesma barraquinha de frutas da esquina ser montada todas as manhãs por uma senhora que não ganhou esta freguesa por pura falta de carisma. Assim mesmo torço por ela. Os motoristas da Borborema discutindo a tabela e fazendo roncar desagradavelmente os velhos ônibus partindo pro Recife Antigo. O carro do gás tocando insistentemente aqueles versos desqualificados e pegajosos: “e e eu iá chorar por você, e e eu iá, ááá, áaá”. Credo!

Depois da padaria, encarar o seu L. Verdureiro, praticante do “lunguismo”, como diria o Pedro Domingues. Sempre pelejando pra vender inteiro um jerimum enooooorme, uma jaca, ou uma melancia descomunal, interrompendo de vez em quando a negociação para se “afirmar”, coitado, convocando aos berros a Dona M., a quem chama de Linda (e isto não é exatamente um carinho): ”Linda, ô Linda, tu num tem nada pra fazer, não é? Ave Maria, mulher é um negócio que sei não, visse?” Superior, indiferente aos resmungos, ela debulha va-ga-ro-sa-men-te o meu quilo de feijão verde. Com as pernas em forma de quatro, escorada no velho balcão, me ponho a apalpar cebolas e a discutir o preço da banana comprida, alongando o tempo de apreciar o espetáculo da vida quando não se quer fazer dela nada além do que é.

Largo as sacolas enquanto travo uma luta com a bolsa em busca das chaves. Venço. Cumprimentos ao Seu G., morador do primeiro andar que cuida com devoção do pequeno jardim do prédio e da tartaruga que por ali se esconde, um querendo sobreviver ao outro.

Resignada, encaro os trabalhos domésticos com ares de mulher antiga. Modéstia à parte, se o Ataulfo e o Mário tivessem me conhecido, Ceronha é era a mulher de verdade, pode crer. É bom dizer que faço por gosto e necessidade também. Do contrário atravesso a fronteira da razão e não tem no mundo quem me pegue. Do fundo do coração, as feministas que me perdoem e considerem o meu esforço, mas, a verdade é que não consegui me adaptar de todo às suas idéias. Por outro lado também não funcionei com Lítio, Rivotril ou as ditas ilegais. Entre uma ou outra limitada inspiração, sobraram-me o tanque e o fogão como bálsamo para aliviar a dor, ou acrescentar às alegrias. Viver.

Coração aberto a tudo, pressente, percebe, recebe o bem e o mal de todos os tempos. Dos infelizes que ilustram o noticiário de hoje às intolerâncias, opressões e selvagerias de tempos distantes. Deságua desespero e amor e ódio também, muitas vezes.

E pelo teatro se expressa, propõe, conversa, tenta fazer diferente. Pagando necessariamente o preço.

Tão assustador mexer nos vespeiros que envolvem Camilles (Claudel), Thomas (de Quincey), Sarahs (Kane), Virgínias (Woolf), Marías (Lejárraga, anônimas, fictícias) e todos aqueles nomes chineses da Revolução Cultural, dos quais nem sei a pronúncia. Sei que preciso levar à cena. Não por gozar com a dor ou com a pretensão inglória de reparar-lhes mal algum. Nunca com o intuito de esfregar meu dedo tolo na cara do expectador, imagine. Principalmente, juro pelo que há de mais sagrado, nunca para me aproveitar de suas desgraças ou genialidades para encher bilheteria. Apenas perseguindo a felicidade, coisa que implica necessariamente conhecer a tormenta. Humano.

No entanto, não escapo de um certo constrangimento em “bulir na vida alheia” como um perverso laboratório pra fazer meu teatrinho. É um custo não me sentir indigna de me emprestar a essas criaturas. Levo ou perco anos a fio muito mais me convencendo do que concebendo. Foi assim com Camille Claudel, cuja “gestação” demorou desesperadores nove anos. E temo seja assim com Vermelho Mudo, que vem se arrastando com o fato agravante de já não viver em Fortaleza, palco que acolhe minhas loucuras feito mãe benevolente. Conto com o alento, paciência e apoio das minhas meninas que ficaram por lá: Marta, Ju, Chris Góis, Chris de Lavôr, Érica, Samanta, Sol. Ao mesmo tempo em que me pesa demasiado sua fé nesse projeto, cujo conteúdo e esboço me alucinam e tiram o sono, enquanto a estréia permanece uma incógnita.

Passo dias e, sobretudo, noites na China de Mao, de onde é possível fazer conexões com outras misérias mundo afora e perto demais. Os rostos das minhas atrizes multiplicados por esta mente confusa na tentativa de traduzir em cena centenas de pessoas exibidas e fuziladas em um único dos muitos comícios públicos para este fim. Soma macabra. Caminhões carregados de cadáveres pingando sangue pelas ruas. Amores que afloram e dilaceram em meio a humilhações, violência, abusos de toda espécie. Gente enlouquecida e gente que, sabe Deus de que maneira permaneceu sã, embora nunca à salvo.

É da Marta a voz que escuto enquanto a História remonta os devastadores terremotos. São as mãos da Juliana que vejo cavando os escombros, procurando filhos. A cabeça da Lavôr recortada (eu ia dizer decepada) pela luz do Façanha, o corpo nu da Góis pendurado inerte, a debilidade da Érica, a fúria de Sol bradando os ensinamentos do Livro Vermelho, a linda e delicada Samanta dançando de esperança, a presença (disso não vou abrir mão) da Izabel Gurgel em alguns ensaios só pra botar mais lenha na fogueira. E tudo ainda há que ser belo, afinal, é arte. Que grande loucura, meu Deus!

Entre uma idéia e outra, devidamente experimentada no próprio corpo antes de propor ao elenco, me agarro às cotidianidades, como salvação mesmo. Pra não perder de vista o plano em que a vida de fato acontece. Lidando com tantas efemeridades, imaginações, imaterialidades, preciso da vassoura de varrer, do ferro de passar, da agulha de coser e, sobretudo, cozinhar eu preciso. Decoro poemas de Kai-hui enquanto corto o manjericão para a sopa de tomates. Componho dourando cebolas e saem cenas inteiras do forno, junto com a torta vegetariana. Não é apenas experiência da vaidade viver como quem faz arte ou o contrário. Meus mundos, tentando encontrar harmoniosa convivência, pelo bem de minha saúde.

Seja 2010 um ano favorável às nossas desejadas estréias, em todos os sentidos. Sejam os dias todos de se viver sem as afobações que propõe o mercado. E que nunca nos abandone “a sorte de um amor tranqüilo”.

Abraços.

Ceronha Pontes

Recife-Pe, 01/01/2010

2 comentários:

  1. É... Bom mesmo é apreciar o espetáculo da vida, sem a pretensão de querer fazer dela mais do que realmente é.
    E, já que também necessário, é bom usar o tanque e o fogão como bálsamo para aliviar a dor, perseguindo incansavelmente a felicidade. Se já sairam cenas inteiras do forno, quem sabe não sai um espetáculo completo, né?!
    É se agarrando nas cotididades que ficamos mais próximos do plano em que a vida de fato acontece. Tendo isso em mente, mantemo-nos sãos, às vezes, mas nunca a salvo, como por ti foi dito!

    Que neste 2010 contemplemos a beleza: Da barraquinha de frutas da esquina; do roncar dos ônibus; do carro do gás; do seu G. e sua tartaruga; e até do "lunguismo" do verdureiro. Que contemplemos a beleza de uma bela peça teatral! Que estejamos cientes de que, se optarmos por buscar a felicidade, conheceremos também a tormenta.

    Belo texto!

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