segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

À DERIVA

“Oxalá, meu pai, tem pena de nós, tem dó!”


China, 28 de julho de 1976, a cidade de Tangshan é arrasada por um terremoto que matou cerca de 300 mil pessoas, de acordo com os números oficiais, quando os dados não oficiais apontam para 600 mil.

Mais do que inadequada, a comunicação naquela China funcionava como um agente do isolamento que o regime político impunha. Resultado disso é que a informação sobre tamanha catástrofe demorou a chegar ao conhecimento do restante do país, coisa que aconteceu depois que um sobrevivente conseguiu viajar até Pequim (160 Km) para pedir socorro, e do alerta da imprensa estrangeira respaldada pelos comunicados de diversos países que dispunham de instrumentos mais sofisticados para monitoramento de tais fenômenos. Além disso, o país estava em crise, o líder Mao Tsé-tung à beira da morte (faleceu em setembro do mesmo ano) e as autoridades estavam muito mais interessadas em perseguir e denunciar o inimigo político. Em discursos públicos destituídos de qualquer sinal de solidariedade, Madame Mao proferia abomináveis palavras: “Houve apenas vários milhares de mortos. E daí? Denunciar Deng Xiaoping interessa a 800 milhões de pessoas”. Nos muros, os seguidores de Mao escreviam: “Fiquem alerta com a tentativa de Deng Xiaoping de explorar a fobia de terremoto para suprimir a revolução”.

A China estava fechada e não permitia qualquer intervenção, nenhuma ajuda internacional. Assim, em completo abandono, numa demonstração da força inexplicável que toma o Homem quando desafiado com tanta fúria, os sobreviventes se “levantam dos próprios joelhos”, me permitindo usar uma expressão do Camarada Mao, e reconstroem a cidade e suas vidas sem, no entanto, conseguir jamais apagar as marcas mais profundas da tragédia.

Fizemos referência a este episódio no post anterior, escrito dias antes do Haiti vir abaixo. A própria China, não faz muito tempo, sofreu abalos traumáticos, com a diferença de hoje dispor de infra e interesse em manter de pé seus cidadãos, trabalhando para conseguir superar enfim os EUA e se tornar a maior potência econômica do planeta. Não me contenho, acabo alfinetando seus ideais. Mas eu ia dizer dos meios de comunicação (ai, fico me coçando pra também falar mal dos modos de manipulação dos mesmos, mas agora não é hora), é justo reconhecer o milagre de termos acesso ao fato no exato instante em que acontece e com isso apressar os esforços mundiais para atenuar o sofrimento dos haitianos, mesmo que tudo pareça insuficiente para recompor aquela nação miserável.

Diante das imagens e depoimentos que temos acompanhado podemos imaginar como foi acontecer algo nas mesmas proporções e, por muito tempo não chegar ninguém, nada, como se Deus fosse tão somente fantasia, um luxo de quem está muito bem, obrigada. Não tem Dante nem Rodin capazes de descrever tal inferno.

Entendo, é claro, esse papo de que “estamos vivos, isso é o que importa, sofrimento é o deles e demos graças pelo conforto do lar, a mesa farta, saúde e tal”. Acontece que as coisas não estão desconectadas e é óbvio que não ficamos bem assim. Comparações à parte, aquilo tudo é com a gente também, nos afeta e mobiliza. Quanto a mim, não mais que um monte de merda, que gracinha fiz aos deuses para merecer paz e amor enquanto desaba um país? Sou grata a...sei lá Quem ou o Quê pela sorte e boa vida mas, não é possível estar de acordo ou indiferente ao que mantém a tantos e tantos impedidos de desfrutar das condições mínimas para existir com alguma dignidade. Pior é que não faço mais que o básico: separar o lixo para reciclagem, tratar os recursos naturais com o devido respeito, não consumir o desnecessário (com algumas exceções, que não sou de ferro). Também peleeeeeejo para não alimentar cobiça ou aversão, evitando gerar e propagar negatividade. Embora pareça infrutífera atitude, confio. Doar o possível nessas situações serve de algum alívio para nós, os afortunados, mas está longe de ser solução.

Caramba, falar e falar não leva a lugar algum. Me manifesto por pura necessidade de estarmos juntos, ao menos isto.

Hoje me abstive das notícias e me proporcionei instantes de alienação e contemplação do domingo chuvoso aqui no Recife. Almoço legal, boa companhia, filminho... Podia ter sido qualquer outro, mas decidimos por Arca Russa (rever depois de muito tempo) do Alexander Sokurov, porque é deslumbrante e, sei lá, pensei em me distrair com a beleza depois da semana dolorida. Ai, a nossa pequenez! Fiquei tão abalada com o filme! Podem alguns acusá-lo de czarista, o que sei é sermos nada diante da beleza, força ou violência da natureza, conforme constatamos em meio às imagens do Haiti e conseguimos a façanha de nos tornarmos pequenos inclusive diante das criações do próprio homem, como bem nos faz sentir o Sokurov neste passeio em sua Arca Russa.

O filme merece um post só seu e não será agora. Por hoje não posso mais nada.

CERONHA PONTES

Recife-Pe, 17/01/2010.

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