quarta-feira, 16 de agosto de 2017

PICADOR DE GELO




“Minha arma é o pincel, a sua é o picador de gelo”, disse a mulher ao “doutor”, referindo-se à sessão de tortura promovida por este, contra um indefeso paciente psiquiátrico e que ela, chocada, num auditório lotado pelas “autoridades” no ramo, presenciou. A mulher do pincel não era artista, senhoras e senhores, embora vivesse cercada por estes. Os artistas muito mais a reconheciam, admiravam e se aliavam, do que aqueles seus colegas inchados de soberba , que cobiçavam fama praticando experiências das mais cruéis, usando como cobaias os loucos abandonados na instituição. Dito isto, pode lhes parecer estranha a escolha por esse título. Explico: nesse dia de hoje, em que recebi tanto da vida, decidi-me por converter dor em ternura, porque eu posso. Céus, EU POSSO! E juro por Antonin Artaud, por Arthur Bispo do Rosário, por Jean Genet, juro por minha adorada Mademoiselle Claudel e, sobretudo, juro por Adelina, por Fernando, por Emydio, por Rafael e ainda por toda uma população de anônimos invisíveis para a sociedade, juro que quando grito EU POSSO, estou num raro momento pleno da mais legítima humildade e gratidão. Converter dor em ternura, ao menos por hoje.
A essa altura, mesmo aquelas pessoas distantes desse universo e que ora me leem, já entenderam que a mulher do pincel é médica psiquiatra. Ora, pois achei justo anuncia-la como MULHER. Agora lhes digo que era uma mulher comunista, senhoras e senhores. Acrescento ainda que a referida era mulher nordestina. Sim, uma brasileira miudinha nascida nas Alagoas. E não duvido que até hoje cause espanto o fato dessa criatura ter de tal forma humanizado o tratamento das doenças mentais, que não foi possível fechar os olhos para essa revolução. Seu nome? NISE DA SILVEIRA. N-I-S-E. Até Jung aprendeu. Não sem antes supor que se tratasse de um “doutor” Silveira, é claro. Ah, Jung!
Pois bem, hoje, no encontro CINEMA NO HOSPITAL- Reflexões e Projeções sobre a Vida, projeto sensivelmente coordenado pela Isabela Cribari , abrigado no Hospital Agamenon Magalhães, aqui no Recife, foi exibido o filme Nise – O Coração da Loucura, de Roberto Berliner, com memorável atuação de Glória Pires e um elenco absolutamente brilhante, no qual a presença do meu amigo Cláudio Jaborandy no papel de Emydio, me comove e orgulha profundamente, não podia deixar de dizer. A seguir, uma fala do artista Gonzaga Leal que, por mérito inequívoco, conviveu e trabalhou ao lado de Nise no Hospital do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. Antigo Hospital Pedro II que hoje leva o nome da médica. Ali também funciona o Museu de Imagens do Inconsciente, onde entrei pela primeira vez pelas mãos de um cliente, como Nise preferia chamar. Um louco diagnosticado e que não se importaria nem um pouco de ser apresentado como tal. Ele que entrou na minha vida através do meu espetáculo sobre Camille Claudel, na temporada do mesmo no Rio de Janeiro em 2013. À época era já uma preocupação das pessoas com quem conversei, algumas que trabalham desde quando o Setor de Terapia Ocupacional transformou-se numa referência, com relação à manutenção e destino do acervo do Museu. Diziam que desde a morte da Dra. Nise evaporou-se qualquer vontade política de preservá-lo. Essa informação dá a dimensão da luta de Nise contra todo o desprezo, deboche e resistência que sofreu principal e imperdoavelmente por parte dos seus colegas. Uns reacionários de vocação duvidosa. Depois de erguer tão magnífico trabalho ao lado de sua equipe, formada por “lunáticos” de outras áreas e que aceitaram tamanho salto no escuro, ainda assim a morte de Nise pôs em risco o projeto. No entanto, eles, quem sejam, os inimigos, eu digo, mesmo ameaçando a sobrevivência do acervo do museu, já não têm como deter Nise. Seu legado se espalha por meio de alguns profissionais de fé, dispostos a trabalhar com tamanha entrega, que se pode afirmar seguramente que sim, Nise vive!
Gonzaga Leal, sem os vícios acadêmicos, sem o ranço das convenções, falava alegremente de seu convívio com ela. Fluía responsável, mas despretensioso.  Ele afirma, numa clara referência a conhecido ditado, que por onde Nise passava brotavam flores. Tenho razões para crer que ele próprio possa ter florescido nessa passagem de Nise por sua vida. Porque Gonzaga tem perfume, sabe? E espinhos, não se engane. Podia, e eu até esperava, ter provocado mais. Mas tenho a impressão de que foi uma escolha pensada deter-se na poesia da convivência com aquele tamanho de mulher, visto que Nise tinha acabado de confrontar ela própria, através do filme, todo um universo de atuação quase que inteiramente ocupado por homens desinteressados pelo próximo e atentos aos próprios interesses, usando descaradamente do desamparo dos internos para suas experiências.
Claro que eu já conhecia a película. De tal modo que cenas encurtadas ou suprimidas não passaram despercebidas. O conteúdo e expressão do discurso de Gonzaga também não são um mistério para mim e isso não quer dizer que ele não se renove ou não se repense, mas que tenho o privilégio de lhe acompanhar o brotar e apurar das ideias dia a dia. E hoje, mesmo sem estar diante de uma novidade, propriamente, fui atravessada em outra parte de meu espírito que, por puro instinto, também se quer em constante movimento  ladeira “arriba”. Sonho é.
Saí dali sem me sentir no direito de me desencorajar para a vida outra vez, embora eu saiba que ainda não tenho força para tanto. Saí com uma vontade de vida do tamanho da minha vontade de morte. Essa fome de viver me acometeu ao me colocar diante de uma mulher cuja grandeza se mostrava mais pela sua postura diante do próprio não saber. Nise não sabia. Depois da prisão, por sua simpatia pelas ideias marxistas, foi atirada naquele monturo de hospital apenas para bater ponto, prescrever uns “lelés” e passar o tempo. Aquilo era a visão do inferno. Diante daquele depósito carregado de trastes sem vida ou função, atendeu aos apelos da sua intuição ainda cautelosa frente aos caos, arregaçou as mangas literalmente e fez ela própria a faxina.  Galpão limpo, vieram os loucos. Não lhe aceitaram o convite para sentar, o que mais uma vez a deixou sem saber. E, em não sabendo, não fez outra coisa senão observá-los com firme propósito de descobrir em cada um os seus canais próprios de expressão. Nunca pretendeu curá-los, por razão de que a cura não existe e nisso ela de fato acreditava, contrariando mais uma vez os colegas. Só queria que os loucos pudessem encontrar algum conforto em ser o que são. Ah, como é bonito ver alguém desejar ao outro nada menos do que deseja para si mesmo!
Nise estava aberta. Não se interessava por condecorações. Aceitava ideias. Criteriosa, se disponibilizava para as experiências que lhe propunham os outros. A ideia, por exemplo, de um ateliê de pintura no STO nem foi da médica, porque, repito, ela não sabia ainda o caminho. Mas como quem não tem nada, nada pode perder, criou-se o ateliê pelo empenho do artista plástico Almir Mavignier e a sabedoria de Nise estava mais uma vez e sempre em observar. Fascinante a sua percepção das imagens produzidas pelos loucos e visível a evolução destes a cada pincelada, através das quais se impunha naturalmente uma lógica e uma forma de se fazerem entender. Uma vez compreendidos, seguramente mais acolhidos. Minhas senhoras e meus senhores, olhar para o outro, desejoso de aprendê-lo e de com ele se integrar, demanda. Quando aponto o “não saber” de Nise frente àquilo que desdenhosamente colocaram para ela na instituição, quero, de joelhos, afirmar o seu GÊNIO. Uma prova dessa genialidade, aliás, e que deixaria o seu segmento mais uma vez revoltado: a descoberta da importância dos animais no processo  terapêutico. O despertar e florescer dos afetos nessa relação naturalmente pura entre bicho e louco não deixariam de promover a desconfiança e a fúria daqueles médicos tão destituídos de empatia, habituados a procedimentos destrutivos. Certa vez Nise afirmou a um colega que os cães trazidos por ela e sua equipe para o hospital eram mais limpos que os pacientes daquele e que não seriam retirados dali porque funcionavam como co-terapeutas. Foi demasiada afronta para o tal cientista. Foi tão insuportável que a ele e aos seus comparsas não restou outra saída senão vingar-se, assassinando os cães. Terrível!
Teria o resto de minha vida para discorrer sobre o filme em seus mínimos detalhes, para fazer conexões entre tudo que nesse encontro vivemos, com minha própria experiência pelos hospitais psiquiátricos, tanto na condição de artista pesquisadora como de paciente. Mas já me exibi o bastante, não? Peço ainda e só que me permitam dizer de uma cena para mim a mais comovente e esclarecedora do caráter daquela mulher rara. A dantesca imagem dos cães mortos no pátio não poderia deixar de promover o surto generalizado entre os pacientes. Era tão horrorosa aquela visão, que ninguém, mesmo não sendo um louco daqueles tão beneficiados na convivência com os animais, poderia manter-se inabalável. Um dos clientes reagiu com a mesma e tamanha violência que acabara de sofrer. Não havia controle possível para a sua dor naquele momento. Os senhores cientistas então o atiraram de volta à mesma e repugnante cela onde ele vivia abandoado antes da chegada da Dra. Nise ao hospital. A cena que mais me emociona acontece a seguir. Nise invade a sala dos médicos como um raio e se põe ajoelhada, implorando que libertem o paciente, que não o machuquem, que o devolvam ao STO e permitam que ele siga no tratamento com ela. Aquela mulher plena de dignidade, de verdade, de compromisso com os seus, ajoelhada, implorando. Foi quando a pequena Nise mais se mostrou a gigante que foi, que é e será sempre. Não é todo mundo capaz de se render com tanta dignidade. Claro que ela não se ajoelhava para o colega, embora fosse diante dele. Ajoelhava-se para e pelo seu paciente. Não pode haver orgulho diante de uma vida ameaçada. Os justos e bons mais honrados estarão quando curvados  ao dever, ao juramento: SALVAR VIDAS.
Armada com pincel, cinzel, martelete ou picador de gelo, não importa, Nise me quebrou sempre as resistências, os preconceitos, os medos, a intolerância, a ignorância, a inveja, e outras incapacidades e mazelas das quais, não sem constrangimento, confesso que padeço. Mas compreendam que precisava me derramar aqui de alguma forma, tomada que fui pela verdadeira gratidão. Esta é destituída de obrigação e culpa. A verdadeira gratidão gera a boníssima vontade de multiplicar o bem que recebemos. E eu recebi tanto naquela manhã , ao perceber maior a minha fome de vida, que a gratidão aqui transborda em palavras as mais amorosas de que sou capaz. Dor em ternura, persigo. Vamos dançar?

Ceronha Pontes
Recife, 14 de agosto de 2016.

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