“Minha arma é o pincel, a sua é o picador de gelo”, disse a mulher
ao “doutor”, referindo-se à sessão de tortura promovida por este, contra um
indefeso paciente psiquiátrico e que ela, chocada, num auditório lotado pelas
“autoridades” no ramo, presenciou. A mulher do pincel não era artista, senhoras
e senhores, embora vivesse cercada por estes. Os artistas muito mais a
reconheciam, admiravam e se aliavam, do que aqueles seus colegas inchados de
soberba , que cobiçavam fama praticando experiências das mais cruéis, usando
como cobaias os loucos abandonados na instituição. Dito isto, pode lhes parecer
estranha a escolha por esse título. Explico: nesse dia de hoje, em que recebi
tanto da vida, decidi-me por converter dor em ternura, porque eu posso. Céus,
EU POSSO! E juro por Antonin Artaud, por Arthur Bispo do Rosário, por Jean
Genet, juro por minha adorada Mademoiselle Claudel e, sobretudo, juro por
Adelina, por Fernando, por Emydio, por Rafael e ainda por toda uma população de
anônimos invisíveis para a sociedade, juro que quando grito EU POSSO, estou num
raro momento pleno da mais legítima humildade e gratidão. Converter dor em
ternura, ao menos por hoje.
A essa altura, mesmo aquelas pessoas distantes desse
universo e que ora me leem, já entenderam que a mulher do pincel é médica psiquiatra.
Ora, pois achei justo anuncia-la como MULHER. Agora lhes digo que era uma
mulher comunista, senhoras e senhores. Acrescento ainda que a referida era
mulher nordestina. Sim, uma brasileira miudinha nascida nas Alagoas. E não
duvido que até hoje cause espanto o fato dessa criatura ter de tal forma
humanizado o tratamento das doenças mentais, que não foi possível fechar os
olhos para essa revolução. Seu nome? NISE DA SILVEIRA. N-I-S-E. Até Jung aprendeu.
Não sem antes supor que se tratasse de um “doutor” Silveira, é claro. Ah, Jung!
Pois bem, hoje, no encontro CINEMA NO HOSPITAL- Reflexões e
Projeções sobre a Vida, projeto sensivelmente coordenado pela Isabela Cribari , abrigado no Hospital Agamenon Magalhães,
aqui no Recife, foi exibido o filme Nise – O Coração da Loucura, de Roberto Berliner,
com memorável atuação de Glória Pires e um elenco absolutamente brilhante, no
qual a presença do meu amigo Cláudio Jaborandy no papel de Emydio, me comove e
orgulha profundamente, não podia deixar de dizer. A seguir, uma fala do artista
Gonzaga Leal que, por mérito inequívoco, conviveu e trabalhou ao lado de Nise
no Hospital do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. Antigo Hospital Pedro II
que hoje leva o nome da médica. Ali também funciona o Museu de Imagens do
Inconsciente, onde entrei pela primeira vez pelas mãos de um cliente, como Nise
preferia chamar. Um louco diagnosticado e que não se importaria nem um pouco de
ser apresentado como tal. Ele que entrou na minha vida através do meu
espetáculo sobre Camille Claudel, na temporada do mesmo no Rio de Janeiro em
2013. À época era já uma preocupação das pessoas com quem conversei, algumas
que trabalham desde quando o Setor de Terapia Ocupacional transformou-se numa referência,
com relação à manutenção e destino do acervo do Museu. Diziam que desde a morte
da Dra. Nise evaporou-se qualquer vontade política de preservá-lo. Essa
informação dá a dimensão da luta de Nise contra todo o desprezo, deboche e
resistência que sofreu principal e imperdoavelmente por parte dos seus colegas.
Uns reacionários de vocação duvidosa. Depois de erguer tão magnífico trabalho
ao lado de sua equipe, formada por “lunáticos” de outras áreas e que aceitaram tamanho
salto no escuro, ainda assim a morte de Nise pôs em risco o projeto. No
entanto, eles, quem sejam, os inimigos, eu digo, mesmo ameaçando a
sobrevivência do acervo do museu, já não têm como deter Nise. Seu legado se
espalha por meio de alguns profissionais de fé, dispostos a trabalhar com
tamanha entrega, que se pode afirmar seguramente que sim, Nise vive!
Gonzaga Leal, sem os vícios acadêmicos, sem o ranço das
convenções, falava alegremente de seu convívio com ela. Fluía responsável, mas
despretensioso. Ele afirma, numa clara
referência a conhecido ditado, que por onde Nise passava brotavam flores. Tenho
razões para crer que ele próprio possa ter florescido nessa passagem de Nise
por sua vida. Porque Gonzaga tem perfume, sabe? E espinhos, não se engane.
Podia, e eu até esperava, ter provocado mais. Mas tenho a impressão de que foi
uma escolha pensada deter-se na poesia da convivência com aquele tamanho de
mulher, visto que Nise tinha acabado de confrontar ela própria, através do
filme, todo um universo de atuação quase que inteiramente ocupado por homens
desinteressados pelo próximo e atentos aos próprios interesses, usando descaradamente
do desamparo dos internos para suas experiências.
Claro que eu já conhecia a película. De tal modo que cenas
encurtadas ou suprimidas não passaram despercebidas. O conteúdo e expressão do
discurso de Gonzaga também não são um mistério para mim e isso não quer dizer
que ele não se renove ou não se repense, mas que tenho o privilégio de lhe
acompanhar o brotar e apurar das ideias dia a dia. E hoje, mesmo sem estar
diante de uma novidade, propriamente, fui atravessada em outra parte de meu
espírito que, por puro instinto, também se quer em constante movimento ladeira “arriba”. Sonho é.
Saí dali sem me sentir no direito de me desencorajar para a
vida outra vez, embora eu saiba que ainda não tenho força para tanto. Saí com uma
vontade de vida do tamanho da minha vontade de morte. Essa fome de viver me
acometeu ao me colocar diante de uma mulher cuja grandeza se mostrava mais pela
sua postura diante do próprio não saber. Nise não sabia. Depois da prisão, por sua
simpatia pelas ideias marxistas, foi atirada naquele monturo de hospital apenas
para bater ponto, prescrever uns “lelés” e passar o tempo. Aquilo era a visão do
inferno. Diante daquele depósito carregado de trastes sem vida ou função,
atendeu aos apelos da sua intuição ainda cautelosa frente aos caos, arregaçou
as mangas literalmente e fez ela própria a faxina. Galpão limpo, vieram os loucos. Não lhe
aceitaram o convite para sentar, o que mais uma vez a deixou sem saber. E, em
não sabendo, não fez outra coisa senão observá-los com firme propósito de descobrir
em cada um os seus canais próprios de expressão. Nunca pretendeu curá-los, por
razão de que a cura não existe e nisso ela de fato acreditava, contrariando
mais uma vez os colegas. Só queria que os loucos pudessem encontrar algum
conforto em ser o que são. Ah, como é bonito ver alguém desejar ao outro nada
menos do que deseja para si mesmo!
Nise estava aberta. Não se interessava por condecorações.
Aceitava ideias. Criteriosa, se disponibilizava para as experiências que lhe
propunham os outros. A ideia, por exemplo, de um ateliê de pintura no STO nem
foi da médica, porque, repito, ela não sabia ainda o caminho. Mas como quem não
tem nada, nada pode perder, criou-se o ateliê pelo empenho do artista plástico
Almir Mavignier e a sabedoria de Nise estava mais uma vez e sempre em observar.
Fascinante a sua percepção das imagens produzidas pelos loucos e visível a evolução
destes a cada pincelada, através das quais se impunha naturalmente uma lógica e
uma forma de se fazerem entender. Uma vez compreendidos, seguramente mais
acolhidos. Minhas senhoras e meus senhores, olhar para o outro, desejoso de
aprendê-lo e de com ele se integrar, demanda. Quando aponto o “não saber” de
Nise frente àquilo que desdenhosamente colocaram para ela na instituição,
quero, de joelhos, afirmar o seu GÊNIO. Uma prova dessa genialidade, aliás, e
que deixaria o seu segmento mais uma vez revoltado: a descoberta da importância
dos animais no processo terapêutico. O
despertar e florescer dos afetos nessa relação naturalmente pura entre bicho e
louco não deixariam de promover a desconfiança e a fúria daqueles médicos tão
destituídos de empatia, habituados a procedimentos destrutivos. Certa vez Nise
afirmou a um colega que os cães trazidos por ela e sua equipe para o hospital eram
mais limpos que os pacientes daquele e que não seriam retirados dali porque funcionavam
como co-terapeutas. Foi demasiada afronta para o tal cientista. Foi tão insuportável
que a ele e aos seus comparsas não restou outra saída senão vingar-se,
assassinando os cães. Terrível!
Teria o resto de minha vida para discorrer sobre o filme em
seus mínimos detalhes, para fazer conexões entre tudo que nesse encontro
vivemos, com minha própria experiência pelos hospitais psiquiátricos, tanto na
condição de artista pesquisadora como de paciente. Mas já me exibi o bastante,
não? Peço ainda e só que me permitam dizer de uma cena para mim a mais
comovente e esclarecedora do caráter daquela mulher rara. A dantesca imagem dos
cães mortos no pátio não poderia deixar de promover o surto generalizado entre
os pacientes. Era tão horrorosa aquela visão, que ninguém, mesmo não sendo um
louco daqueles tão beneficiados na convivência com os animais, poderia
manter-se inabalável. Um dos clientes reagiu com a mesma e tamanha violência
que acabara de sofrer. Não havia controle possível para a sua dor naquele
momento. Os senhores cientistas então o atiraram de volta à mesma e repugnante
cela onde ele vivia abandoado antes da chegada da Dra. Nise ao hospital. A cena
que mais me emociona acontece a seguir. Nise invade a sala dos médicos como um
raio e se põe ajoelhada, implorando que libertem o paciente, que não o
machuquem, que o devolvam ao STO e permitam que ele siga no tratamento com ela.
Aquela mulher plena de dignidade, de verdade, de compromisso com os seus,
ajoelhada, implorando. Foi quando a pequena Nise mais se mostrou a gigante que
foi, que é e será sempre. Não é todo mundo capaz de se render com tanta
dignidade. Claro que ela não se ajoelhava para o colega, embora fosse diante
dele. Ajoelhava-se para e pelo seu paciente. Não pode haver orgulho diante de
uma vida ameaçada. Os justos e bons mais honrados estarão quando curvados ao dever, ao juramento: SALVAR VIDAS.
Armada com pincel, cinzel, martelete ou picador de gelo, não
importa, Nise me quebrou sempre as resistências, os preconceitos, os medos, a
intolerância, a ignorância, a inveja, e outras incapacidades e mazelas das
quais, não sem constrangimento, confesso que padeço. Mas compreendam que precisava
me derramar aqui de alguma forma, tomada que fui pela verdadeira gratidão. Esta
é destituída de obrigação e culpa. A verdadeira gratidão gera a boníssima
vontade de multiplicar o bem que recebemos. E eu recebi tanto naquela manhã , ao
perceber maior a minha fome de vida, que a gratidão aqui transborda em palavras
as mais amorosas de que sou capaz. Dor em ternura, persigo. Vamos dançar?
Ceronha Pontes
Recife, 14 de agosto de 2016.
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