sexta-feira, 19 de agosto de 2016

O Cão & a Cruz



Noite alta, luz acesa, Alice no portão. Tinha uma sacola de supermercado na mão e uma surpresa petrificada no rosto. A respiração parada. Só quando olhei para onde apontavam os olhos congelados de Alice e vi o Cão já longe correndo em disparada, foi que a percebi em estado de Cruz. Dei por alguma coisa dentro dela querendo romper o peito. Dava saltos visíveis e aflitivos o seu coração. O resto não se movia. Não, não tinha sido por motivo de reza a carreira endemoniada do Tinhoso. Alice nem sabe rezar. Amor é que tem condição de atentar assim, ameaçando os muros e as cercas de arame que a ausência da bravura farpa. Amor. Reza não.
Perguntei, tentando arrancá-la do espanto, o que carregava dentro da sacola. Respondeu-me movendo quase nada os lábios, mas com clareza, que levava salame apimentado e vinho. O volume sugeria mais coisas. Insisti. Batatas, cebolas, alho poró, caldo de legumes em tablete. Adivinhando a receita, tive dó de forçá-la a dizer mais. Silêncio. 
Eu já não via o Cão. Ela sim. Por mais que corra (e como corre!), não desaparecerá tão cedo para Alice Cruz.
Geleia de amora, ela diria depois de não sei quanto tempo, completando o pacote. Foi quando eu chorei. Geleia de amora, ela teve o cuidado.  E eu chorei por ele. Por ele, que comerá a seco o pão que amassou.

Ceronha Pontes
Recife, 19 de agosto de 2016.

Extra; Aos que preferirem finais felizes, O Tufão & a Flor.


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