“O poeta é o contemporâneo da sua vida toda. Dos acontecimentos de que ele não tem a lembrança, tem o pressentimento”.
Paul Claudel
Feitas de gesso aquelas Brancas de Neve em série, com todos os Dungas e Zangados, a Mãe embalava em caixas de papelão e mandava enfeitar quarto de criança nas cidades vizinhas. Era boa também nos trabalhos em pelúcia. Uma bicharada linda de fazer sombra em boneca da Estrela.
E os bolos confeitados de encher mais a alma que a barriga? Coisa de conto de fada! Castelos de açúcar com janelinhas de abrir e fechar, por onde vazava luz pra gente se admirar. O Pai que fazia a instalação. Sem contar que era gostoso. Recheio de goiabada misturada com um pouco de vinho tinto. Teve uma noiva de outro município que afirmou aos seus convidados que o bolo de casamento tinha vindo de São Paulo. A mãe ficou triste. Não lhe pagar devidamente já não era concessão o bastante? Precisava lhe negar o crédito? E porque em Tamboril não se podiam produzir encantos assim?
Também pintava. O Pai pedia um quadro com a paisagem mais bonita da cidade. A Serra das Matas e o Rio Acaraú vistos de cima da ponte da Vila Olga. Depois que a Mãe registrou, veio a enchente que mudou o cenário pra sempre.
Os esqueletos de arame impressionavam mais. A Mãe os envolvia cuidadosamente com pedaços de gaze ou estopa embebidos em gesso. Modelava, modelava... Depois de seco, raspa daqui, corta acolá, o chiado da lixa, o pó se espalhando pelo chão vermelho da casa (sujeito a pegadas de menina pequena), até que surgiam perfeitos os braços, as mãos expressivas de dedos delicados dos santos encomendados.
Qualquer coisa virava ferramenta pelas mãos da Mãe. Cavoucava o bloco de gesso até saírem vivos os rostos com olhos que, juro, brilhavam. E bocas de ameaçar segredos.
O trabalho que entortou os dedos da Mãe era pesado, mas delicado, demorado e de natureza tal que a “criatura” se tornava mais um da família. Quando pronto, aperto no coração. O “dono” vinha buscar. Quase sempre a Mãe (figura tão delicada!) explicava que não era santo de fôrma, feito os dessas lojas de artigos religiosos baratinhos. Era santo esculpido. “Aqui deu trabalho, moço. Sinta o peso. Isto não é santo oco”. Negocia daqui, negocia dali e o “dono” levava por uns trocados de ajudar o Pai.
Houve um 13 de Maio em que a Mãe fez pra Escola a pintura de um negro no tronco. O material era bem simples: cartolina e tinta guache. “Mãe, isso tá um borrão”. A Mãe ria: “é esboço que se diz, minha filha”. Desconfiada: “é só uma mancha marrom”. A Mãe ensinava: “paciência”.
A figura do homem torturado, banhado de suor e sangue só apareceria depois de muitas e cuidadosas pinceladas, praticadas com sensibilidade, amor e... PACIÊNCIA. Menina dos olhos cheios d’água com a dor do preto retratado. A dor que a Mãe entendeu, imprimiu. Era terrível. E magnífico.
Mais tarde posaria ela mesma. Nem foi sacrifício. Gostava já de ficar quieta, à espreita, alerta, pronta pra ver. Está lá na casa de Tamboril a Nossa Senhora da Conceição (acreditem!) esculpida com os traços da menina. A Mãe cuida.
Para sempre guiando meu labor artístico estas primeiras “lições”.
Ceronha Pontes
Recife-PE, 26/10/2010