terça-feira, 2 de fevereiro de 2010
Estúpida Retórica
"Eu quero aproximar o meu cantar vagabundo
daqueles que velam pela alegria do mundo."
(Podres Poderes, Caetano Veloso.)
A inspiração.
Um esbarrão à toa, assim, ao acaso e chega a primeira informação como um simples e inofensivo arranhão, quase imperceptível, indolor ainda. De repente uma coceirinha no local e, “sem querer”, rasgamos à unha a superfície. Há talvez a opção da sutura. Fechar, esquecer. Curiosa, prefiro incisões, aberturas, sondas, canais. Trilha que leve não sei aonde, mas leve. Fui.
Uma área mais afetada ou comprometida puxa o foco. Fim da caminhada a esmo. É o mote. Guia, dali em diante. À leitura do primeiro relato, o desperdício da última chance de voltar atrás. Lanço-me na armadilha, o emaranhado de fios cujos nós tenho desatado a dentadas (inábil), e nunca me iludi de que seria fácil reconectá-los, reconstituir trajetórias, entender tanta História. Como a Revolução Cultural de Mao interage com o movimento natural das mulheres da China.
Oh, não desistam do papo! Não pretendo entediá-los com bla-blá-blás geográficos, cronológicos e tal. É só a idéia pingando mole em pedra dura e os que tiverem saco, bem-vindos sejam.
O desdobramento.
Uma coisa vai levando a muitas outras. Natural da pesquisa. E vicia. Nosso interesse (da Tear Cia de Teatro) pela condição feminina durante a Revolução Cultural Chinesa já promoveu inusitadas descobertas, reflexões e, inclusive, encontros com homens poderosos, marcantes. Franco (Espanha), Mussolini (Itália), Hitler (Alemanha), Stalin (Rússia), sem contar o seboso do Mao Tsé-tung (China)... Só “menino bom”! Como foi que este mundo tão pequeno suportou abrigar estas “crias do cão” tudo bem dizer ao mesmo tempo?
Felizmente há outros. Quando me refiro ao Dalai Lama e ao Mahatma Gandhi, o faço de um lugar onde a razão, creio, é plena e a visão do real precisa. Digo isto, pois sabemos que a Índia, libertada por este e asilo político daquele, traz muito mais imediatamente ao imaginário ocidental os panos coloridos, mantras e queimação de incenso. Nada contra, mas quem não me conhece que não me confunda. Minha admiração profunda por estes homens se justifica no óbvio mesmo, a grandeza de seus claros e justos ideais, associada aos modos para realizar seu audacioso projeto. E é neste modelo de resistência e subversão onde encontramos as motivações para realizarmos o espetáculo Vermelho Mudo que, ao tratar da luta silenciosa daquelas chinesas por seus filhos torturados, suas filhas estupradas, seus maridos humilhados, pretende refletir sobre o que leva milhões de criaturas humanas a ignorarem a própria força e se deixarem conduzir e manipular por mentes cuja especial e rara inteligência, aplicada em sórdidos interesses de tomada, construção e manutenção de nocivo poder, engasgam a matemática em somas de seis milhões de judeus mortos no Holocausto, e mais de 70 milhões de mortos durante os 27 anos em que Mao esteve no poder, POR EXEMPLO.
Tenho esta incapacidade de ser sucinta. Este era pra ser um breve e alegre post sobre o filminho do último sábado, 30 de janeiro de 2010 quando, por pura coincidência, pois nem desconfiávamos que havia 62 anos de sua morte, a sessão de cinema do doce lar exibiu GANDHI, estrelado e dirigido pelos premiados Sir Ben Kingsley e Richard Attenborough respectivamente. E foi muito reconfortante lembrar que as multidões também são capazes de restaurar sua dignidade, auto-estima e coragem de lutar pelo bom e justo. Capazes de topar a grande e necessária “loucura” de não rebater com fúria as agressões, manter a mente forte e segura em seus propósitos, seguindo com um sujeito pequenininho, magrinho, careca, com uns paninhos amarrados cobrindo as vergonhas e carregado de uma coragem, sagacidade, capacidade de criar estratégias que, PUTA QUE PARIU!!!Tem horas que só um palavrão exprime o que vai de encantamento dentro da gente. A grande alma, o gênio do bem. Muito mais difícil que a opção pelas armas é aderir à NÃO VIOLÊNCIA. E foi possível. Um dia foi. Ainda que depois outras ondas tenham estourado e avançado até os nossos dias pela própria Índia e todos os cantos do mundo, a História já registra que é possível, está escrito que a liberdade de uma nação se deu por esta idéia. Este sim, nunca perdeu a ternura. Me comovo mesmo, e me encorajo.
De novo, não me confundam. Sou dessas criaturas de teatro que confiam, sobretudo, na técnica. Não me interessa o teatro carregado de boas intenções e que não seja capaz de sacudir e embevecer o expectador. Devoção ao Belo. E este é um trabalho que independe das motivações políticas, emocionais, psicológicas, o cacete. Mas confesso, se serve para dizer o que penso, o mundo em que gostaria e viver, aí bicho, é até capaz de eu encontrar algum sentido nisso tudo.
Lá no começo falei do “arranhãozinho” que desperta a inspiração e nos conduz à investigação e criação. Pois bem, segue o link do vídeo que me arranhou a pele tenra dos 17 anos, lá em 1989.
http://www.youtube.com/watch?v=7uVPVf42-Ow
CERONHA PONTES
Recife, 02 de fevereiro de 2010.
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