Ao lado, as estrelas
Alícia Pietá, Gisele Almodóvar e Verônica Valentino.
Sou de uma espécie mais mansa da vasta fauna que tem no Centrão de Fortaleza o seu habitat natural. Por onde tenho andado desde que deixei a cidade, não raramente me sinto bicho triste, perdido em selva alheia. O Centro testemunhou minhas transformações, acolheu e zelou por todas que tive tempo de ser ali. Carrego marcas que me levam desde o Lord Hotel, passando pelas praças, cortando caminho por dentro das lojas, descendo a São Paulo, atravessando a Conde D’eu, circulando a Catedral e desembocando num falecido Coração Materno. Por viver ali se entenda mais que estudar, comprar, fazer meu teatrinho. Foi de fato morada minha. E pra caber tanta riqueza de um coração de cidade, isto tinha de ser muito mais que apenas um post pretensioso.
Façamos então um recorte. É noite, estamos na rua detrás daquela tradicional escola religiosa com frente para a Duque de Caxias (acho que hoje é só faculdade). Distribuídas pelas esquinas, emergem as criaturas que mais me atiçaram os sentidos, os nervos, a curiosidade e a imaginação. Tive medo, muitas vezes, de que não me reconhecessem amigável, por isso fazia o jogo do invisível e nunca lhes cumprimentei como gostaria. Indignei-me sempre com reações de desprezo, de zombaria e com a violência física a que estão sujeitos os travestis, atacados pelo macharal apavorado em lidar com os próprios desejos, em nome de uma moral falida ou desse nojento sentimento de superioridade do gênero. E porque o preconceito e intolerância sempre quiseram justificar a violência, que por sua vez gera mais de si, não esperem que as purpurinadas de shortinho explodindo em bunda de silicone sejam exemplos de candura.
“Eu sou a flor carnívora e noturna que vai te entontecer e te arrastar para o fundo de seu jardim pestilento.” *
De dia vê-se uma ou outra guerreira (posso ouvir as gargalhadas do primo Ed lendo “guerreira”) comprando meio frango assado na churrascaria, enfrentando a reprovação das donas de casa no supermercado próximo à Pça. Coração de Jesus, a mangofa dos taxistas do Parque da Criança. Expostas ao deboche corrosivo dos transeuntes. Eu também ri, mas ri com elas, que batem com força os tamancos no chão, aprumam o rabo e o rebolam no melhor estilo La Büdchen, viram a cara sacudindo a duvidosa escova definitiva (a boa e velha rabissaca) e abrem o seu caminho com a dignidade das feras. Eu vi.
“Como queria tanto saber poder te avisar: vai pelo caminho da esquerda, boy, que pelo da direita tem lobo mau e solidão medonha”.*
Muito do meu feitio, claro que me afeiçoei especialmente a uma que batizamos de Muda. Na verdade tinha a fala comprometida pela surdez. Foi a criatura mais faceira e feliz que já desfilou pelo Centrão. Parecia não lhe pesar aquela condição e o seu estilo foi sempre um soco no meu estômago melindroso. Mas a nossa heroína também tem lá os seus rompantes (o que a torna ainda mais interessante) e já foi vista, mui brava, esmurrando enorme cachorro de raça. O mesmo que em outros momentos sucumbia ao seu cafuné em sessões de caça aos carrapatos. Num fim de tarde, sentados no chão de um terraço insuspeitável, a Muda e o cão, tão comoventemente integrados, que dava vontade de nos juntarmos a eles levando um bolo de fubá, um bule de café fresco e histórias de amor pra contar.
Mesmo morando fora, tive sempre notícias das “meninas”, que nunca atentaram (será que não?)para a janela indiscretíssima dando acesso ao seu incrível fundo de quintal, onde um cotidiano alucinante tanto nos divertia quanto preocupava. Quando meu informante viu a Muda pela última vez, ela estava bem machucada. Depois disso não se sabe o que é feito dela. Trocávamos e-mails fazendo conjecturas. Até que meu parceiro de voyeurismo e eu decidimos otimistas que o fim da história é que ela voltou para o seu interior onde foi acolhida e cuidada pela família. Bem o que gostaríamos que nos acontecesse caso precisássemos retornar a Tamboril em condições semelhantes. Santo Anastácio nos livre de triste sina.
Antes que o papo fique jururu feito domingo no Centrão, me jogo no
Cabaré da Dama. Arre égua, que o batidão é babaaado!!!
O referido
Cabaré, ao contrário do que muitos podem pensar, não é nenhum estabelecimento nas proximidades da Praça da Estação. De caráter itinerante, ficou perfeito mesmo foi no porão do Theatro José de Alencar. Comandado por Silvero Pereira, o
Cabaré é a evolução de
Flor de Dama, espetáculo que, a princípio, era apenas mais uma adaptação de
Dama da Noite, do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu. Silvero acrescentou ao conto os encantos e desencantos da vida dos travestis. E eu que sempre fui de botar bom reparo nessa gente, fico feliz da vida que meu colega tenha explorado o tema com tanta responsabilidade, coragem, alegria, ética e muito talento. Universo travesti de A a Z. Silvero vai do submundo à sofisticação com as muitas atrações que passam por ali, dentre as quais se destacam Alicia Pietá (Bernardo Vítor) e a Verônica Valentino (Jomar Carramanhos), companheiras inseparáveis da protagonista Gisele Almodóvar (Silvero Pereira). É tanto fuzuê, tanto “bafon”, tanta putaria, que temi não rolasse a transição para o drama que deve necessariamente instaurar-se quando surge finalmente a
Flor. Mas o Silvero, ah o Silvero, aquela cobrinha criada, sabe o momento preciso de dar o bote, a rasteira na platéia que agora bem pianinho, entra num outro espetáculo e faz tudo o que sua
Dama ordenar.
A cena é a madrugada, o fim do show, o último suspiro do boteco. É embriagarmo-nos com o perfume da fodida flor esquisita,
“darkérrima, modernésima, puro simulacro” *, a
Dama da Noite, escrotíssimamente lúcida. É sexo, solidão e morte. É acompanharmos a
Flor até o seu cafofo, apreciarmos o desmoronar de sua maquiagem até que a ela não seja mais que um profundo cansaço de viver.
“Deixa você passar dos trinta, trinta e cinco, ir chegando nos quarenta e não casar e nem ter esses monstros que eles chamam de filhos, casa própria nem porra nenhuma. Acordar no meio da tarde, de ressaca. Olhar sua cara arrebentada no espelho. Sozinho em casa, sozinho na cidade, sozinho no mundo. Vai doer tanto, menino”. *
O streap tease da
Flor. Ela contra si mesma no espelho, liberta enfim o pau estrangulado naquele esconderijo improvável, atola a bunda na bacia sanitária e ali talvez fosse ficar até murchar definitivamente.
Depois de tudo partimos tontos de constrangimento. Creio que nunca mais deixaremos de ouvir lá bem dentro de nós mesmos aquele eco, aquela
Flor:
“Ria de mim, mas estou aqui parada, bêbada, pateta e ridícula, só porque no meio desse lixo todo procuro o verdadeiro amor. Cuidado comigo: Um dia encontro.” *
O diabo é quem duvida dessa rapariga!
Já de novo o sol na moleira, infinidade de sons e odores e pressa de chegar não sei aonde.
-O vestidinho da moça da novela por sete e noventa e nove!
-Saindo pastel de carne com caldo de cana.
-Ó a quentinha por um real!
-O quilo é dois e cinqüenta, o quilo!
-Escova inteligente e marroquina em três prestações de não sei quantos...
Ferve o Centrão abrindo passagem para outros bichos.
Com saudade medonha,
CERONHA PONTES
Recife,10 de fevereiro de 2010
*Todas as citações extraídas do conto Dama da Noite, de Caio Fernando Abreu.