terça-feira, 19 de julho de 2016

Dores subliminares ao melhor amigo ou simplesmente CARTA PARA NIKOLAJ



Caríssimo Nikolaj,

Ah, seu velho mijão, que falta me fazes!

Do lado de cá desse mar o sol está escaldante. Rio de te imaginar aí, descalço, sentindo a areia fina grudando das tuas pernas. Lembro como isso te atormenta. Quero teus olhos ao lado dos meus, olhar contigo da mesma extremidade, porque sozinho não estou dando conta de apreciar a força dessas águas, sem encharcar o meu fraldão. Caracóis dos teus cabelos ralos, que fraldas mais vagabundas eu tenho usado! Não encontro por aqui a marca que me recomendaste. Voltemos às águas. Não falo da sua força manifesta, visível, amedrontadora. Mas da invisível, da densidade do silêncio quando fundas. No oceano eu penso como algo possuidor de um grande poder de preservação. Um oceano atravessando um amor, preserva-o. O que em geral se lamenta como distância e impossibilidade, pode assumir a condição da mais adorável e duradoura existência, se contar com um oceano no meio. Ousar desafiar o oceano, encolhê-lo, pode ser mortal. Já sabes do que estou a padecer, seu bruxo fedido. Precisas de mais indícios?
Quantas garrafas atiraste ao mar para mim ao longo dessa nossa eternidade? Cada uma que eu encontrei foi garantia de inspiração por mais vidas do que eu desejo viver. Mas não foste o único, meu caro amigo. E não me faça nenhuma cara enciumada e aborrecida porque eu nem acredito. Teu coração é do vento. Alguns fazem negócio com o diabo. Tu, Nikolaj, com o vento. Mas se insistes em um alento, ainda que não necessites, saiba que não guardei nenhum vestígio que não os teus, meu desgraçado amigo, sabedor de minhas mais inconfessáveis mazelas. Se abres esta tua boca roxa, minha reputação estará para todo o sempre abalada e sou feliz com isso. Confiança é a coisa mais bonita que se pode sentir. Não podemos confiar em toda gente e há muita gente que não devia mesmo confiar-se a nós mas, entre nós dois, nunca haverá o que temer. Isso é lindo. Nós somos raros. Tudo o mais é triste. 
Gostaria de escorrer para o mar neste instante pela alegria de tua existência, e que minhas mais salgadas e felizes lágrimas fossem lavar os teus pés aí do outro lado, meu amigo. Terás de me perdoar pela momentânea impotência, pois é fato que o que derramo é tristeza, e por tanto que me adivinhas, não é necessário que me alongue. Em realidade já estou demasiado tonto com esses volteios. Já o sabes.
De resto, bebi tanto ontem à noite que fui parar na Rayuela, crês? Estavam todos muito loucos e Cortázar, gentil, acolheu-me. Terias apreciado o delírio.

Um beijo salgado deste velho que não tarda a descer aos infernos.

Frederick

P.S.: Me ocorre que não era do meu lado que mais poderias me ajudar a sustentar essas águas. É olhando aí da outra ponta que tu me equilibras. Obrigado.

 Por Ceronha Pontes, em 19 de julho de 2016.




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