quarta-feira, 27 de julho de 2016

Para Alessandro Baricco




Alessandro,

Venho por meio desta agradecer-te pela comoção que voltou a me causar a tua escrita. Seda, com renovado poder, arrastou-me outra vez por camadas e mais camadas de extraordinária delicadeza. Delicadeza que corta.
Seguro afirmas que o silêncio é condição para que uma história comece, de modo que fico miúda só de imaginar o peso do silêncio que antecedeu a rajada de tiros que disparas em Sem Sangue. Esses teus mortos e feridos, todos tão irremediavelmente marcados, são com tanta humanidade expostos, que não é possível aplicar-lhes nenhum julgamento. Nosso "certo" e "errado", sob o desconhecido prostrados, choram com eles o mesmíssimo desamparo. 
Não tenho dúvida de que o busquei outra vez, Alessandro, pela tal fidelidade ao horror. A mesma que mobilizou Nina. Porque através de Nina me encorajarias a revisitar e enfrentar o despedaçamento, para dessa vez encontrar a clemência e conseguir enfim SER o silêncio profundo e limpo sobre o qual a história, uma outra história, poderá se erguer.
Eis-me aqui, repartida e agradecida a ti.

Um abraço,

Ceronha.

Extra:

"Então pensou que, por mais incompreensível que seja a vida, provavelmente nós a cruzamos com o único desejo de retornar ao inferno que nos gerou, e de viver ali, ao lado de quem, uma vez, nos salvou daquele inferno. Tentou pensar de onde vinha aquela fidelidade ao horror, mas descobriu não ter resposta. Compreendia somente que nada é mais forte do que o instinto de voltar para lá onde nos despedaçaram, e de repetir aquele instante por anos. Pensando apenas que quem nos salvou uma vez pode depois nos salvar para sempre. Num longo inferno idêntico ao que vivemos. Mas inesperadamente clemente. E sem sangue".
(Alessandro Baricco - Sem Sangue)




terça-feira, 19 de julho de 2016

Dores subliminares ao melhor amigo ou simplesmente CARTA PARA NIKOLAJ



Caríssimo Nikolaj,

Ah, seu velho mijão, que falta me fazes!

Do lado de cá desse mar o sol está escaldante. Rio de te imaginar aí, descalço, sentindo a areia fina grudando das tuas pernas. Lembro como isso te atormenta. Quero teus olhos ao lado dos meus, olhar contigo da mesma extremidade, porque sozinho não estou dando conta de apreciar a força dessas águas, sem encharcar o meu fraldão. Caracóis dos teus cabelos ralos, que fraldas mais vagabundas eu tenho usado! Não encontro por aqui a marca que me recomendaste. Voltemos às águas. Não falo da sua força manifesta, visível, amedrontadora. Mas da invisível, da densidade do silêncio quando fundas. No oceano eu penso como algo possuidor de um grande poder de preservação. Um oceano atravessando um amor, preserva-o. O que em geral se lamenta como distância e impossibilidade, pode assumir a condição da mais adorável e duradoura existência, se contar com um oceano no meio. Ousar desafiar o oceano, encolhê-lo, pode ser mortal. Já sabes do que estou a padecer, seu bruxo fedido. Precisas de mais indícios?
Quantas garrafas atiraste ao mar para mim ao longo dessa nossa eternidade? Cada uma que eu encontrei foi garantia de inspiração por mais vidas do que eu desejo viver. Mas não foste o único, meu caro amigo. E não me faça nenhuma cara enciumada e aborrecida porque eu nem acredito. Teu coração é do vento. Alguns fazem negócio com o diabo. Tu, Nikolaj, com o vento. Mas se insistes em um alento, ainda que não necessites, saiba que não guardei nenhum vestígio que não os teus, meu desgraçado amigo, sabedor de minhas mais inconfessáveis mazelas. Se abres esta tua boca roxa, minha reputação estará para todo o sempre abalada e sou feliz com isso. Confiança é a coisa mais bonita que se pode sentir. Não podemos confiar em toda gente e há muita gente que não devia mesmo confiar-se a nós mas, entre nós dois, nunca haverá o que temer. Isso é lindo. Nós somos raros. Tudo o mais é triste. 
Gostaria de escorrer para o mar neste instante pela alegria de tua existência, e que minhas mais salgadas e felizes lágrimas fossem lavar os teus pés aí do outro lado, meu amigo. Terás de me perdoar pela momentânea impotência, pois é fato que o que derramo é tristeza, e por tanto que me adivinhas, não é necessário que me alongue. Em realidade já estou demasiado tonto com esses volteios. Já o sabes.
De resto, bebi tanto ontem à noite que fui parar na Rayuela, crês? Estavam todos muito loucos e Cortázar, gentil, acolheu-me. Terias apreciado o delírio.

Um beijo salgado deste velho que não tarda a descer aos infernos.

Frederick

P.S.: Me ocorre que não era do meu lado que mais poderias me ajudar a sustentar essas águas. É olhando aí da outra ponta que tu me equilibras. Obrigado.

 Por Ceronha Pontes, em 19 de julho de 2016.