PLANILHAS X POETAS MORTOS
Nos últimos tempos você deixou de ser o meu primeiro pensamento do dia. Um avanço? Mas ainda é, com frequência, o último.
Não, o exagero do elemento terra no seu mapa não é desculpa, isso não justifica você, como pensa aquela que ora se autodenomina a sua “tal felicidade”. Acho até que ela sabe e deve tentar, como eu, explicar pela configuração astral, querendo porque querendo que você seja realmente digno do amor que lhe é dedicado, porque é triste o desperdício, sabe? Tanto fogo no meu mapa já devia ter consumido as lembranças, mas, ah, essa água em minha lua! Sem contar o fato de que você não veio sozinho. Veio tão bem acompanhado, aliás, chega eu fico molinha.
Você se apresentou a mim tirando onda consigo mesmo, dizendo pra eu não reparar que você era um pouco “demente”. Muito boba, tropecei no seu charme, caí de cara, rachei um dente. Pois é, meu coração ficou que não serve mais nem pra ser rima. Diz aqui o Google que, no sentido figurado, demente significa incoerente. O que também significa inconsequente, inconsistente, ilógico, absurdo, DESCONEXO (cara… cóis dos meu cabelos),inconstante, volúvel… Isso me lembra que ainda fomos ao cinema com as crianças antes de você desaparecer. Um desenho divertido que havia estreado há poucos dias naquele janeiro de 2019. Você que me chamou, lembra? Chamar alguém para ir ao cinema com as crianças sugere uma baita cumplicidade. Como é que pode você fazer o ghosting imediatamente depois? Ghosting rouba da gente o cheiro da pipoca, o gosto do refrigerante, a risada, a ida ao banheiro com as crianças no meio do filme, a carona de volta pra casa, a promessa bonita naquele até breve. O ghosting rasga páginas importantes da biografia, desaparece com elas quando melhor seria que, de tal maneira as apagasse, que não deixasse essa fisgada no membro perdido, como muito bem descreve o Chico. Deve haver uma palavra mais absurda que “demente” para dizer de você.
Nós sempre soubemos, e disso até o mapa astral dá conta, que seu gosto por planilhas haveria de buscar alguém que curta métodos, fórmulas, receitas, nem que sejam aquelas que se encontram nesses livros expostos na entrada das livrarias, prometendo superação e sucesso. Alguém que siga à risca a orientação do coach, que trata problemas como desafios, que se organiza na vida para liderar e surpreender o mercado. Planilhas não combinam com o desejo de ir na contramão, de se enfiar no labirinto dos sebos em busca dos poetas mortos de tuberculose, overdose, amor. Planilhas não combinam com a exposição das próprias fragilidades e feiúras. Na planilha ou na receita de sucesso não cabe nem rímel borrado, quanto mais um tal pássaro azul no peito, um porre colossal, três maços de cigarro por dia. Nós sempre soubemos. A gente não se entendia nem em Caetano (cuja canção você só dava like se a sua crush judia postasse), muito menos em Cazuza, Sérgio Sampaio, Torquato Neto, Raul… Renato Russo então, vixe Maria. A gente não se entendia em Beatles. E o Bach, que nos impressiona a ambos, bem, nem mesmo nele a gente se entende. É a matemática do seu ouvido que guia suas mãos talentosas. Enquanto a mim, aquela ária da quarta corda leva para um conto de uma velha escritora amada minha, cuja protagonista vai até o fundo do oceano e morre como se fosse “a whiter shade of pele”. Não, a gente não se entende em Procol Harum, apesar do Johann Sebastian Bach. Mas ainda assim eu questiono e sofro com seu desaparecimento, porque havia, além do cinema com as crianças, aquele fondue de chocolate, a sopa de batatas, o risoto de camarão, aquela moqueca que te deu dor de barriga, o vinho, os vídeos das crianças tomando banho de mangueira no jardim, de você fazendo mágica, malabares ou limpando a bagunça dos cães. Havia os cães. E havia mais. Havia uma lua que, quando na sua fase cheia entrava pela janela do seu quarto, você, bem regido por um signo de terra, organizava meu corpo sobre a cama de modo a direcionar o foco prateado para o prazer. Por que diabos tive pudor de escrever a palavra sexo?
Bom, é por isso que eu me pergunto porquê, se havia tanto naquela história, que cabia até, e com alegria, essa que agora se apresenta como a sua “tal felicidade”?
Há dias eu não acordo pensando em você, é verdade, mas, que horas são? É, às onze e quinze de uma manhã de domingo já deu tempo de pensar e até escrever uma crônica.
Ceronha Pontes
Fortaleza, 21 de março de 2021