quarta-feira, 3 de setembro de 2014

O BAILE



CAPÍTULO IV

"Cada persona tiene que descubrir cuáles son sus detonadores para poder vivir, pues la combustión que se produce al encenderse uno de ellos es lo que nutre de energía al alma."
(Por Laura Esquivel - Como agua para chocolate)

Dançando com Tita


              A atriz mexicana Lumi Cavazos no papel de Tita                 

Precisei dormir. E sonhar. Para estar aqui, nos anos distantes de um outro século, numa festa de casamento no interior do México. Vim para ver a cozinheira, que é pessoa de minha estima. Ouvi seu choro outra vez depois de longos anos. Ela, que desde o ventre da mãe chorava, e que foi justamente empurrada para o mundo por uma torrente de lágrimas. As mais salgadas que alguém já derramou.
Nos reencontranos porque dia desses eu precisei me reequilibrar e o modo mais eficaz que encontrei foi cozinhando. Daí a série imediatamente anterior a "O Baile", "Como água para chocolate ", serviu-me de escapatória. Saborosa escapatória. Se hoje danço, é muito graças a Tita, que me lembrou de também poder a tudo na vida traduzir ou converter em delicado prazer, através deste dom que temos em comum, sendo que eu numa condição ainda bem amadora. No sentido que mais importa, nós duas, AMADORAS. Foi por amor que eu vim.


Entro na cozinha. Tita está preparando o bolo dos noivos.
- Também já temperei o meu bolo de banana com algumas lágrimas. 
Ela se espanta com minha presença, mas depois me abraça forte. Soluçamos. Ela repara que já não sou uma mocinha.
- Sim, minha querida, lá fora o tempo passa. Mas não é uma alegria que ainda possamos nos reconhecer em tempos e planos de existência tão distintos? E que possamos nos consolar mutuamente? Acredite, vamos até rir juntas ainda, durante esta mesma festa que te dói como se o enterro fosse, do ser amado.
Ela me conta o que eu já sei, mas, ao ouví-la, sei mais sobre o que me espantou também, certa vez. Ela fica curiosa. Não consigo lhe dizer muita coisa. Mais confundo que explico sobre como, na minha história, terminei por odiar o verbo "subtrair". Na condição de objeto subtraído não tem graça nenhuma. Graça deve ter para o sujeito da ação que com muito orgulho alardeia seu feito de livrar-se do mal, amém.  No caso, livrar-se também do "mau". Objeto mau, que faz mal. Ela não entende, é claro, e voltamos a falar de Pedro e Rosaura.
- Tenho ganas de surrar Rosaura, Tita. Ela não tinha o direito. Vi como ficou feliz em se exibir com Pedro para o teu sofrimento. Sei exatamente o que sentes ao vê-la desfilar vitoriosa ao lado dele. Vitoriosa por te ferir, enfim. Chegou longe demais. Casar-se com ele? E não espere que ela se desculpe algum dia pela covardia. ELA NAO O FARÁ. Não acha que te deve isso e te advirto que os desdobramentos desse enlace te exigirão muita força e amor. Mas tu és forte e amorosa para seguires até onde for. E de como tudo isso termina, não posso te dizer senão o que agora nem podes entender. 
E digo a ela qualquer confusão sobre detonadores, sobre o fogo, o ardor. E sobre o contrário: fósforos umedecidos¹.
bolo ficou pronto. 
Eles, Rosaura e Pedro, já disseram o sim. Os convidados são servidos. São, em verdade, enfeitiçados pela comida de Tita, que lhes aflora o inconfessável. Tita quase não suporta, mas insisto que ela deve esperar até partirem o bolo. É quando todos começam a chorar a dor de Tita e a de seus próprios amores traídos, interrompidos. Neste momento, intoxicados, estão todos à beira do rio, vomitando a sua agonia.  Imploro por um pedaço desse bolo a Tita, porque tantas vezes quis (quero) vomitar meu coração, mas ela me impede. Me lembra outra vez que o nosso lugar é no preparo das poções. Neste momento lhe antecipo que deverá aprender a fazer codornas com pétalas de rosas. Que ela deve ir investigando, criando, porque haverá de usar dessa "mandinga" mais cedo ou mais tarde. Ela ri. Me emociono por fazê-lá rir. 


- Vamos escapar daqui, Tita. Tua mãe não demora a punir-te pelo estrago. Vamos comemorar só nós duas essa primeira pequena vingança. Tu vais tomar gosto por praticá-las, sem que isso te comprometa a bondade. És tão especial, Tita!
Ela é quem me arrasta para o sótão. Não sem antes passarmos pela cozinha, de onde carrega uma garrafa de vinho e um pedaço de pão. Deste banquete comeremos o pão de véspera e nada mais. Subimos. Ela tranca bem a porta. Tiramos os sapatos e rodopiamos livres. Por umas frestas podemos observar o desespero de Rosaura, a confusão de Pedro, a fúria da mãe, e rimos. Rimos muito. Até chorarmos. Convido-a para dançar. Ela me lembra que não há música aqui e que não devemos fazer barulho.  Ignoro. Tomo-a pela cintura e a conduzo enquanto canto bem baixinho, de modo que só nós duas e algum querido leitor possa escutar.


Quem mais saiba, me acompanhe sussurrando:

Tonada de la luna llena²

Yo vide una garza mora
dandole combate a un rio.
Asi es como se enamora
Tu corazon con el mio.

Luna, luna, luna llena
Menguante.
Luna, luna, luna llena
Menguante.

Anda muchacho a la casa
Y me traes la carabina
Pa' mata este gavilán
Que no me deja gallina.

La luna me esta mirando
Yo no se lo que me ve
Yo tengo la ropa limpia
Ayer tarde la lave.

Luna, luna, luna llena
Menguante
Luna, luna, luna llena
Menguante.

Hoooo, luna llena, pongate.

Ainda me lembro de ter dito a ela que era uma música vinda de outro filme, que aprendi com um cantor de minha terra. Ela não entende nada muito bem a esta altura. Eu acordo. Tenho os olhos molhados e sinto gosto de fósforo na boca, embora a pele, estranhamente, esteja perfumada de alecrim. É tudo.

Ceronha Pontes

Notas:

1- "Claro que también hay que poner mucho cuidado en ir encendiendo los cerillos uno por uno.
Porque si por una emoción muy fuerte se llegan a encender todos de un solo golpe producen un resplandor tan fuerte que ilumina mas allá de lo que podemos ver normalmente y entonces ante nuestros ojos aparece un túnel esplendoroso que nos muestra el camino que olvidamos al momento de nacer, llevándonos a la misma muerte." 
(Laura Esquivel - Como agua para chocolate)

2- Canção que Cetano Veloso canta no filme de Almodóvar, A Flor do meu Segredo. Eu não lembro quem a compôs.