sexta-feira, 26 de agosto de 2016

OS PRESENTES



Para o seu aniversário, a preciosa Silvinha Góes pediu aos amigos que presenteassem a si mesmos com alguma experiência que lhes fizesse bem. Eu achei o tipo de convocatória, além de rara, das mais bonitas. Fiz meu esforço, seguindo algumas sugestões da própria aniversariante. Ela falou sobre dar um mergulho no mar, afastar os móveis e dançar, ler um poema, entre outras coisas. Hoje não tive forças sequer para arrumar a cama, quanto mais dançar. Cheguei a pegar a minha "roupa de banho azul marinho, em duas peças". Sim, eu tenho uma com essa descrição, que era o desejo da minha amiga íntima, a Mademoiselle Claudel. Mas também não tive forças para enfrentar o mar. Então eu escrevi. Bom, escrever eu faço sem qualquer pretensão. Me derramo e pronto. Uma espécie de alívio. Ou de vingança, como diria um escritor de minha estima. E também li poesias. Escolhi um poeta paraguaio que nasceu no mesmo ano que o Papai e apenas 20 dias antes, no mesmíssimo mês de fevereiro, o José María Gómez Sanjurjo. Dos seus versos que mais reverberam em mim e não necessariamente para a minha alegria, caramba, ditos em espanhol soam mais lindos ainda, leiam vocês mesmos:
"Te abandonas a la dulzura penosa de saber que el
amor es un cuento repetido que acaba
en tristezas."


E por último me dei de presente um par de brincos que são a Lili Elbe. A do filme, em dose dupla!!! Carregarei a garota dinamarquesa comigo, me dizendo ao pé do ouvido coisas que só pessoas da sua estatura podem, para encorajar criaturas miúdas e fracassadas como esta que vos fala.
Lili, que já foi Einar, é provavelmente a primeira pessoa a fazer a cirurgia genital, posto que não havia nascido num corpo que correspondesse ao seu espírito, ou gênero, se preferirem. Era, enquanto Einar, um grande artista. Morreria de complicações após a cirurgia. Mas morreria mulher. Morreria sendo que era. Ah, a liberdade não tem mesmo preço! Não à toa haverá sempre quem se disponha a pagá-la com a vida. Lili, desde que era Einar, contou com a esposa Gerda, cujo amor, AMOR VERDADEIRO, garantiu que permanecesse ao seu lado até sempre. Lili e Gerda são a prova de que é possível ser o que se é sem deixar de ser verdadeiro com quem lhe ama.


Minha Lili em brincos foi o melhor presente dos três, pois o mundo está carecendo de experiências de amor profundo e comprometido, que contrariem os versos do meu “amigo” paraguaio e o meu escrito do dia, sobre helicópteros que atropelam (e matam) sentimentos.

Ceronha Pontes

P.S.: Nas fotos, a verdadeira Lili, o ator Eddie Redmayne, que a interpretou no cinema e, claro, os brincos.



HÁ CANÇÕES E HÁ MOMENTOS



Alice ia caminhando pela estrada, com destino a uma festa de aniversário. Levava de presente um macaquinho de pelúcia, uma garrafa de vinho e uma crônica que escreveu para determinada publicação, e para a qual o dono da festa havia sido a inspiração. Entretanto, um helicóptero em manobra de pouso passou por ela derrubando tudo.  O pergaminho com a crônica voou longe, o bichinho ficou de repente roto, de repente indigno, de repente tão envergonhado. Alice, igualmente suja e desalinhada, o recolheu e seguiu de volta para casa, cambaleante. Um bocado triste. A garrafa de vinho, bem, Alice não teve força de se meter nos arbustos para procurar. Pode ser que depois da festa, naquela hora de levar os cães para passear, eles farejem e façam seu dono saber que Alice esteve ali. Tomara que a garrafa não tenha se partido. Alice não deseja que os cães inocentes se cortem nos cacos de vidro. Ela pensa isso quando se dá conta do corte no próprio peito. Quando o helicóptero a sacudiu, ela caiu de modo a bater forte sobre uma pedra aguda solta na estrada.  Percebeu também que a saia ficou mais rasgada do que lhe pareceu a princípio. Cresceu em vergonha, sabendo-se tão exposta e tendo ainda tanta estrada que voltar. Mora longe. Abaixou a cabeça e apressou o passo. Numa outra casa da mesma Aldeia, alguém pôs o Milton Nascimento pra tocar. Alice chorava, porque cada nota era outro corte na sua carne. Eu sei a razão, mas não posso envergonhá-la mais.

Ceronha Pontes


Extra: O helicóptero era bastante aguardado na festa. Alice, não.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

O Cão & a Cruz



Noite alta, luz acesa, Alice no portão. Tinha uma sacola de supermercado na mão e uma surpresa petrificada no rosto. A respiração parada. Só quando olhei para onde apontavam os olhos congelados de Alice e vi o Cão já longe correndo em disparada, foi que a percebi em estado de Cruz. Dei por alguma coisa dentro dela querendo romper o peito. Dava saltos visíveis e aflitivos o seu coração. O resto não se movia. Não, não tinha sido por motivo de reza a carreira endemoniada do Tinhoso. Alice nem sabe rezar. Amor é que tem condição de atentar assim, ameaçando os muros e as cercas de arame que a ausência da bravura farpa. Amor. Reza não.
Perguntei, tentando arrancá-la do espanto, o que carregava dentro da sacola. Respondeu-me movendo quase nada os lábios, mas com clareza, que levava salame apimentado e vinho. O volume sugeria mais coisas. Insisti. Batatas, cebolas, alho poró, caldo de legumes em tablete. Adivinhando a receita, tive dó de forçá-la a dizer mais. Silêncio. 
Eu já não via o Cão. Ela sim. Por mais que corra (e como corre!), não desaparecerá tão cedo para Alice Cruz.
Geleia de amora, ela diria depois de não sei quanto tempo, completando o pacote. Foi quando eu chorei. Geleia de amora, ela teve o cuidado.  E eu chorei por ele. Por ele, que comerá a seco o pão que amassou.

Ceronha Pontes
Recife, 19 de agosto de 2016.

Extra; Aos que preferirem finais felizes, O Tufão & a Flor.