sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Para Nikolaj


Meu caro Nikolaj,

Aposto que estás na terceira dose de uísque e o charuto aceso, buscando paciência para ler este teu velho e enfadonho amigo. Abriste o envelope? Pois saiba que desta vez o tema é aprazível. Para ti, que continuas o tarado de sempre, embora em vias de voltar a usar fraldas.
Faz quanto tempo, Nikolaj, que a pequena Azul-Monet me entortou as ideias e quase morri? Dela tu te lembras, bêbado traidor, pois também foste seduzido, embora nunca tanto quanto me deixei. Ela adorava Monet, falava dos seus azuis movendo as mãos tão delicadamente, tão perigosamente. Diáfana, aquela criatura. Linda! Me enlouqueceu de modo que até hoje me custa pronunciar o seu legítimo nome. Azul-Monet, e basta.
A novidade é que me apaixonei novamente. A bebida te engasga, por certo, e ris deste farrapo amigo. Cretino!
Fui arrogante me julgando imune. Seres como nós, no amor, já vivemos todos os papéis. O que poderia me surpreender, não é mesmo? Ou quem? Mia Lil,  o nome da bandida. Um par de pequenos seios somados a uma bunda mais sublime que a de Benvinda, acredite. Não te direi do sexo mais que é a perfeição em carne. E que acolhimento! Que perfume! Não vá ter outro ataque do coração adivinhando minha intimidade, seu porco babão.
Mia parecia me amar. Até que eu perdesse as forças e todas as resistências. Então se encantou por outro poeta. Agora eu, além de fracassado maldito, estou escravizado e doente, Nikolaj. Necessitado de uns tapas nas costas e duradoura embriaguez. Pensei em ficarmos um tempo na montanha. Por esses dias, antes que a lua cheia venha acentuar a tormenta.  A perversa tem qualquer coisa com a lua, sabes? Feitiço, deve ser. E também é azul. Não o azul de Monet, pois menos sutil que a outra. Um azul óbvio, escancarado e insuportável. A propósito, faça-me a gentileza de esquecer em casa o seu gasto e embolorado pulôver azul. E também o disco do seu adorado Antônio Carlos não sei de quê, pois se ele vier com aqueles versos sobre morar no azul não sei de quem, tomarei todos os comprimidos que carregas contigo, com uma dose assassina do escocês que tu também levarás, eu conto. E não escapo.
Ah, Nikolaj, como dói ver a amada enredada em trama de onde fui descartado, banido mesmo. É cruel. Eu não sentia mais nem fisgada nas cicatrizes, tão protegido em meu sarcasmo, quando Mia Lil... Desgraçada!
Todas deviam ser como Úrsula, te lembras? Aquela selvagem adorável que desenha e escreve poemas em cemitérios, nos fins de tarde? Inesquecível Úrsula, que não me importei de perder. Como pude, se tão linda e livre Úrsula?
Trata-se agora de Mia Lil. Fuja se ouvir este nome, amigo. É tão viciante que nem tu darias conta do abismo que se faz quando ela parte. Porque ela parte. Depois, é minha. Amigos, amigos...
Aguardo tua resposta com a maleta pronta.
Um abraço forte deste dinossauro esquecido de desaparecer.

Frederick.

(Por Ceronha Pontes)


Para Mia Lil



Pense bem, Mia Lil, quando foi que você me enxergou? Sem nada que não me pertencesse ou traduzisse de fato? Não teria sido no exato instante em que me desamou? Contando que alguém amasse o que não vê, não sabe...
Por trás das tuas lágrimas solidárias, faz festa o teu gozo, enfim, sobre o que julgas minha covardia. Não digas que não, não é vergonha. Humano, apenas.
Danças onde me enterro. E me enterro no chão que outrora te roubei ou, mais verdadeiro, roubou-te a fantasia que fazias de minha figura triste e empenhada já, noutro modo de amar. O qual, apesar das certezas todas, conseguiste desconfigurar. Gostas do verbo, pois não? Des-con-fi-gu-rar. E é fato: quando te moves, desconfiguras tudo ao teu redor. Ao teu redor, eu, distraído, passos tímidos, dancei. E dancei. Me ferrei, eu quero dizer, Mia.

Teu, o verdadeiro,
Frederick.

(Por Ceronha Pontes)


segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

ESPETACULAR ESPETACULOSO


Uma interseção poética entre gastronomia e artes cênicas.
                               
                                O prato que me coube:
                         Coração de pombo no sarcófago.

Num cabaret berlinense cravado clandestinamente no Recife Velho,

 idealizado por Klaus e Alexander,

e comandado por ele,          

melhor dizendo, por ela,

la peligrosa Madame Kovacic,

um lugar onde alimentar a carne e o espírito,

habitado por santas corrompidas e anjos decaídos,



Franziska,

a mais antiga das dançarinas,

caiu nas armadilhas da paixão. E o jovem Konrad,


sob o ardil de Hildegard,


abandonou Franziska em desespero, trocando-a pela jovem e recém-chegada Sabina, ex-mucama

da encantadora Brigitte.

Vingativa, Franziska mata o amante e serve seu coração aos comensais. 

Mórbida, ainda lhes ensina a receita desenvolvida pela peligrosa Kovacic: 

Coer de Colombe dans le Sarcophage


As fotos são do Alex Ribeiro.





domingo, 12 de janeiro de 2014

Lettre d'Amour 2ª temporada (parte final)


Catherine, obrigada. Muito obrigada, querida, por tudo. Teu zelo tem sido conforto verdadeiro. Te necessito.
Belle, se mais não ofereces é justamente por saberes retirar-se quando o momento pede. Te sou grata pela compreensão. Vejo que as obrigações te pesam demasiado neste momento. E muito por minha causa. Boa sorte, meu bem. Só mais alguns dias e tu estarás livre de tão desgastantes deveres. Então te abraçarei e cuidarei com o imenso carinho que mereces. Até lá estarei refeita e disposta.
Hélenè, gostaria que soubesses que te entendo e tenho feito de tudo para seguir contigo. O tempo passa também para mim e com ele aprendo. Ao contrário do que pensas, enxergo, celebro e desejo para mim o que alcançaste. De verdade. Hoje mesmo observei escondida a tua suavidade enquanto desfrutavas de um café com bolo no fim da tarde, em terna companhia e plena calmaria. Esta calmaria que espíritos jovens demais julgariam tediosa e infrutífera, é uma dádiva. Eu bem sei. Confies.
Charlotte, amo você e amarei sempre, mesmo sabendo que de nossa afeição mútua sempre surgirá algum perigo. Não se aflija. Sempre vi tudo. Tudo mesmo. E jamais ousei julgá-la. Eu estive e estarei com você sempre de livre e absolutamente espontânea vontade.
Não nos arranhemos mais. Não pelo que sucedeu. Sigamos. O amor saiu vitorioso mais uma vez. Sua vitória é de meu entendimento, embora minhas sensações ainda estejam deslocadas. Rendo-me, e com ternura, às cinzas de onde se vê o amor. O verdadeiro. Aquele que só se manifesta quando o fogo cessa, depois de consumir os excessos.

Um beijo da Marion.

P.S.: Muito se confunde o "viver" com arder em chamas. Como se tão grandiosa oportunidade fosse feita somente de desassossego. Então nos cobram coragem para viver o fogo, oh! Covardia optar pelas cinzas, é como os ingênuos vêem. Há que se ter coragem para partir. E coragem em dobro para ficar. De falta de coragem não nos podem acusar. Vamos ao cinema?



(Por Ceronha Pontes)

A primeira temporada em julho de 2011.


terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Lettre d'Amour 2ª temporada (9)


Prezadas Hélenè e Charlotte,

Isabelle e eu estamos profundamente decepcionadas com tudo isso. Sim, violei sua correspondência, sob os protestos de Belle, com o propósito de compreender e ajudar Marion.
Primeiro não é possível concordar com a mera coadjuvância à qual nos querem relegar. Excluam-nos e sobrevivam, se puderem. Depois, esses anos todos de mentira. Orgulham-se disso, Senhoras?
Quando Madame Charlotte e a Pequena Marion voltaram daquela viagem torta, achávamos que o estado em que se encontrava a Pequena fosse consequência de tanto se ocupar em defender Charllote da própria loucura. Charlotte, você pesa demasiado. Então as recebemos de volta e cuidamos para lhe devolver a dignidade, Charlotte. Sua saúde física, seu espírito mais ou menos nos eixos e você estaria novamente pronta para suas aventuras. Você se colocou na frente de Marion que, dia após dia recuperava ou camuflava as feições sob inquestionável doçura.
Então arrastaste Marion para o precipício e depois de ela quase morrer, nos fez crer que aquilo tudo nem era tanto assim, tomando para si todas as atenções e cuidados? E ainda posa de melhor companheira da Pequena? Você é um verme, Charlotte.
E você, Hélenè, com sua aparente lucidez, seu discurso reto, sua conduta madura, moralmente respeitável, uma farça. Falsa!
Saibam que meus poetas mortos, aos quais devem muito de sua inspiração, me ensinaram a ler dentro. E dentro de você, Hélenè, é Heiner Müller quem me diz, habita uma serpente. Papel que lhe cairia com perfeição, se você tivesse algum talento: a Marquesa de Merteuil. Enquanto Marion, ofélica, agoniza. Nelson Rodrigues me sopra neste instante que muitas vezes, em vez de Marion, você mesma desfrutava da felicidade destinada a Charlotte. "Batata!", sentencia.
Senhoras, afastem-se, se guardam algum vestígio de legítima compaixão. Cuido eu de Marion neste momento, segura de que o que vocês atraem, ou pelo qual se sentem atraídas, não deve merecer empenho.
Isabelle trabalha, e muito, garantindo a credibilidade que você, Charlotte, com seus arroubos vulgares, muitas vezes põe em risco. Para que você desfrute de seu ilusório protagonismo, Isabelle trabalha.
O seu egoísmo, Charlotte, e a sua hipocrisia, Hélenè, nos envergonham. Se aproveitam da sensibilidade exacerbada de Marion, desfrutam de sua intensidade, para depois a atiraem num canto da cozinha quando a experiência toma rumos que ameacem suas confortáveis escolhas.
Peço-lhes encarecidamente realizarem o esforço de se afastarem, refletirem e se apresentarem de volta quando puderem compreender o mal que resulta de seu estufadíssimo ego.
Agradecemos desde já a necessária compreensão.

Catherine

(Por Ceronha Pontes)

domingo, 5 de janeiro de 2014

Lettre d'Amour 2ª temporada (8)


Charlotte,

Reconheço e me desculpo por minha aspereza. É fato que estamos todas empenhadas em reencontrar o eixo.
Catherine, adoravelmente desastrada, no intuito de resgatar Marion da imensa tristeza, achou de lhe recitar o Bocage. Oh, meu Deus, o Bocage da nossa adolescência! Ela estava séria em sua missão, nós é que rimos. Belle, eu e até Marion. Rimos e sei que silenciosamente concordamos que líamos Bocage pelo prazer de nos mostrarmos meninas incomuns, você não acha? Você, eu lembro, aos 14 ou 15 já preferia o Drummond.  E é justo de sua Quadrilha que extraio minha explicação para todo este rebuliço do qual ainda vamos rir muito. Nós tivemos, temos problemas muito maiores. Talvez até por isso mesmo a vida nos dê o refresco de doer por algo que nos renda alguma canção tolinha, mais tarde. Certo, estou diminuindo demais a coisa, perdão.
Fato é: na Quadrilha tudo se explica. Você e Marion ainda não enxergaram o que se passa e a dura tarefa de trazer a luz para esses assuntos foi sempre da fria e calculista Hélenè. Marion amava alguém, que amava Charlotte, que não amava ninguém. Quando alguém desistiu de Charlotte, que por sinal estava longe e ocupada com questões de ordem outra, quem sofreu a perda foi Marion, que nunca foi o alvo, pobrezinha, mas que de vez em quando conseguia viver em seu lugar, prezada Charlotte, instantes da maior felicidade. Marion não sabe doer. E acontece que não podemos sacrificar tudo o mais em função de sua pouca habilidade para com as frustrações. Da próxima vez, Charlotte, preste mais atenção, antes de colocar sua Pequena em tão maus lençóis. Sei que não o fazes por mal.
Se vens, seja para ajudar Marion a aceitar que não era ela o alvo de seu objeto do desejo. Que isto nunca foi recíproco, tal e qual está posto pelo Carlinhos.
Marion é só uma menina que superprotegemos e não consegue aceitar que a vida não é só poesia, sabe? Não é só céu lindamente azul, sol se pondo na praia, metáforas rasinhas de canções para bonequinhas. É coisa de profissional, a vida. Amador se arrebenta, Charlotte. Tu, que és uma criatura mundana e safa, o sabes melhor que nós todas.
Ela vai chorar, vai se achar a mais injustiçada das criaturas, e aí? Não podemos lhe oferecer espaço para as suas inconsequências. Comprometer conquistas preciosas por conta de sua avidez adolescente. Que ela aproveite a oportunidade para encantar amores que não cabem da vida real. E deixá-los lá nesse não sei onde. Você, eu bem sei, tem seus refúgios e eu nunca a perturbei por isso. Que ela aprenda também, a distinguir o real da fantasia, é o que posso desejar. Não abro mão um milésimo de segundo da lucidez que nos faz avançar, e que você, quando doida, às vezes também se põe a questionar, mas, eu sei que você sabe quem lhe garantiu espaço favorável para a criação, e por isso não se importou de manter Marion sob controle até então. Pense nisso. Conversem claramente sobre isso. E ainda que não concordem com o que digo, não recusem a reflexão.
No mais, Belle estuda já seus papéis e não vejo a hora de ver a francesa em você. Boa sorte ou, merda, como vocês gostam de dizer.

Com amor,

Hélenè.

P.S.: Por último, quero dizer que tanto quanto cada uma de vocês, gosto de estar emocionada. Neste momento, como você pode supor, eu não estou. Não sinto nada. Acontece que, diferente sobretudo de você e Marion, eu não me desespero. É tudo uma questão de tempo. 

(Por Ceronha Pontes) 

Lettre d'Amour 2ª temporada (7)


Charlotte, minha Doida,

Te escrevo de um quarto trancado a chaves para evitar a insistência das outras. Desde que anunciaste tua visita já consegui tomar um sorvete e te sou grata por me devolveres algum mel.
Tu és de fato a melhor de nós, embora não sobrevivas sem estas quatro atrapalhadas e nada carismáticas faces. Como é que consegues fazer o que fazes desde que optamos por me abafar as pulsões? Tu sabes melhor do que eu mesma o quanto isto pode te atrapalhar a criação. Para ti não deveria haver zona que fosse proibida. Charlotte, à tua missão, liberdade absoluta é imprescindível e, no entanto, concordaste em comprometer isso para me proteger de minha incapacidade de permanecer saudável no exercício de meu próprio desejo. Me perdoa, querida. É justo te sacrificares assim? E se eu aprendesse o que fazer do monstro que toma corpo toda vez que me deparo com isto que nos assombra novamente?
Não te demores mais. Ainda que não encontremos solução mais eficiente que a condução de Hélenè, me abraça forte, me deixa encharcar tua camisa com a minha dor.
Hélenè também sofre. Ela está fazendo das tripas coração para não gritar também, para não me empurrar para uma vida só minha, me responsabilizando por saltar ou me defender do abismo.
A opção por Hélenè tem 99% de chance de nos levar a uma velhice suave, mas, até ela, penso, gostaria de saber às vezes como é chutar o balde, coisa que você faz muito bem e que eu pratiquei muito em sua companhia, debaixo de temporais.
Nós estamos vivas pela sorte de ter Hélenè entre nós, lembro inevitavelmente disso a cada vez que a raiva de me ver bloqueada se manifesta. A vida,  a vida mesmo, no seu conceito mais básico, é muito preciosa. Não é covardia optar por ela. Entretanto, quero descobrir um jeito de me cumprir sem lhes roubar a chance. Talvez eu tenha o dever de contribuir mais que com panelas de brigadeiro e arroz com lentilha.
Me ajude, Charlotte.

Sua minúscula Marion.

(Por Ceronha Pontes)

Lettre d'Amour 2ª temporada (6)


Hélenè,

É impressionante o "profissionalismo" com que te diriges a mim. Nem com Isabelle, com quem divido as agruras do ofício, conseguiria me portar tão burocraticamente. Trata-se das nossas vidas, Hélenè, ou nossa VIDA, se você prefere nos aprisionar no singular.
Não, não vou acusá-la de nada. Mas você não pode esquecer que não constava no nosso "contrato" impedir-me a sina minha. Aliás, estive sempre muito certa de que meus dons também nos garantem alguma saúde.
Naquele momento você queria sim, nos obrigar a seguir com você numa viagem que nos colocaria a todas em situação de escravas das convenções. O pão, Hélenè, permita que lhe diga, não pode custar tão caro e, contra isto eu sempre lutarei.
O assunto agora é Marion. No tocante a ela lhe devemos muito, Hélenè, e nem Marion nem eu teríamos como negar. Não passaremos, no entanto, o resto da vida lhe agradecendo, se é o que espera.
Belle e Catherine, a nossa Bisonha, nunca sequer estranharam, posto que ficaram muito bem acomodadas em seus papéis. Belle nos cuida porque é a mais equilibrada, estudiosa e razoável, além da boníssima índole. Catherine parece descartável para quem vê de fora, mas nós sabemos com quanta inspiração ela contribui, sempre tão bem acompanhada de gente como Vladimir , Arthur, Delmira, Richard, August, Lucien...
Sobrando para você, Marion e eu, a carne, o sangue, e os ossos em dor. Ou vai querer me convencer de que sua função não lhe matará qualquer coisa de muito cara?
Peço que seja amena a sua postura neste momento e que tenhamos condições de ajudar Marion mais uma vez, enfrentando mais corajosamente a verdade de seu coração, antes de lhe envolvermos com panos quentes que o tempo, fatalmente, esfriará.
Lhe respeito o lugar na nossa história Hélenè, mas, somente juntas é que deveremos escrever o que deverá ser lido após "aqui jaz". O singular proposital, para te lembrares que seremos tanto mais UMA, quando todas plenas. Equação difícil? Dificílima. Mas não existe saída.
Estou chegando.
Um abraço tão respeitoso quando verdadeiramente amoroso,

Charlotte.

(Por Ceronha Pontes)

Lettre d'Amour 2ª temporada (5)


Charlotte,

Há algum tempo tu te revoltaste contra mim, esquecendo que minha postura já evitou o grande mal. Me acusavas de ser egoísta, de tomar decisões sem me importar com as necessidadesdes de todas as partes, sobretudo, no que se referia a ti.
É certo que nos entendemos e, embora não sejamos de todo realizadas, também não nos destruímos, como tudo levava a crer. Mas não posso desconsiderar que naquele momento esqueceste que tu mesma, quando Marion, em estado de absoluta fragilidade nos colocava em risco grave, me entregaste as rédeas e clamou por esta configuração que desde então apresentamos a mundo. Agora Marion, por sua vocação própria e que jamais conseguiremos abafar totalmente, nos colocou outra vez vulneráveis aos males de viver. Ela luta, é verdade. Luta bravamente dentro do seu silêncio quase absoluto. A mim compete fortalecê-la no propósito de se afastar, e a nós, do precipício.
Lembre-se de tudo isso antes de pensar em mais uma vez me acusar de não levar em conta as suas pulsões.

Com respeito,

Hélenè.

(Por CeronhaPontes)

Lettre d'Amour 2ª temporada (4)


Doida, minha Doida, venha sim! Que já não tenho pernas e o tempo não se importa. E nem perdoará o meu delito.

Sua devotada Marion.

(Por Ceronha Pontes)

Lettre d'Amour 2ª temporada (3)


Ma petite Marion,
É terrível não poder te oferecer um abraço de carne neste momento. Creia, tomo já as providências para tanto. Chego o quanto antes, mas, até lá, o tempo e a distância são impiedosos com minha aflição.
Oh, parte mais doce e adorada de mim, não suporto que sofras! Tu, dentre nós, és a única a quem a dor não poderia ser destinada. Tu, que és puro amor, minha Pequena.
Belle me falou de teu pedido, o que me deixa ainda mais apavorada. Sim, se te traz algum alívio, não me ocuparei dos papeis aos quais te referiste. Belle os fará com sua técnica e calma, enquanto me entrego, do jeito que me é peculiar, à Camille, mas, principalmente, quero me dedicar a ti, Pequena.
Se não suportas ver em mim a Luiza perdendo sua mulher, ou a Aurora paralisada diante do próprio destino e mal podendo dançar um tango com Frida Kahlo, e se te colocas em sofrida oposição à Hélenè... Como eu queria estar enganada, Marion!
Preciso admitir que nunca acreditei que, depois de tão terrível episódio anos atrás, tu estivesses de todo protegida do mal que adivinho. Mas não encontrei à época melhor saída para te arrancar a dor. No fundo intuía que, uma hora ou outra, tu baterias no tatame, meu amor. E porque é inevitável, ficarias do modo que me descrevem. Marion, precisamos refletir muito seriamente sobre tudo isso. Parece que a vida veio finalmente nos cobrar pela covardia de outrora.
Belle e Bisonha não poderiam mesmo imaginar, posto que viajávamos juntas, só nós duas, quando tudo aconteceu, e recorremos a Hélenè em segredo.
Pelo amor dos deuses todos, me espera,  querida. Devo a ti o melhor de mim. Não me impeças tentar. Eu chego.
Um abraço apertado e quente, onde tu te demores até ficares em paz. Te amo.

Charlotte, a tua doida.

(Por Ceronha Pontes)

Lettre d'Amour 2ª temporada (2)


Querida Charlotte,

Perdoe Catherine pela abordagem. Ela está, assim como Hélenè e eu, preocupada com o estado de Marion. Não te avisamos antes porque temos acompanhado a tua luta para reocupar o teu espaço, retomar o ofício do modo como deves e mereces, depois de tanto sofrermos os desajustes, as diferenças entre nós, te amarrando a uma realidade que não condiz com a tua natureza. Preciso dizer que mesmo Hélenè reconhece o valor de tuas conquistas, que nos fazem a todas vitoriosas.
Pois bem, Marion está doente. Seu corpo pedece de males originalmente emocionais. Males que não conseguimos desvendar e que ela, inerte, não tem condições e, creio, nem vontade de revelar. Não temos conseguido reverter os sintomas, apesar dos esforços.
Catherine até tem se ocupado da cozinha, imagine. Tenta retribuir todo o bem que Marion lhe proporcionou sempre. Ontem mesmo preparou mjadra, certa de que restituiria as forças à nossa Pequena, como acontece com ela própria, cada vez que Marion lhe oferece este prato. Operação mjadra, te lembras? Desta vez as lentilhas não surtiram qualquer efeito.
De uns dias para cá, no entanto, tornou-se indisfarçável uma tensão entre Marion e Hélenè. É um dado importante que não consigo decifrar e Hélenè, bem, não esclarece nada, apesar de muita insistência minha e de Catherine. Parece culpada. Ontem mesmo, antes de dormir, preparou com todo zelo um chai, destacando o cardamomo do jeito que Marion aprecia, deixou a xícara na mesinha de cabeceira da Pequena, que não tomou sequer um gole. Hoje de manhã Hélenè recolheu e jogou na pia. E ficou ali por muito tempo, catatônica, depois que o líquido escorreu todo e rapidamente pelo ralo.
A única coisa que Marion conseguiu falar nos últimos dias, foi um estranho pedido. Implorou para que eu, e não você, me ocupasse de Luiza e Aurora. Mas não explicou porque não suportaria ver você, Charlotte, representando tais papéis. Isso lhe diz alguma coisa? Então, eu posso? Confesso que já havia pensado que para você seria muito desgastante mesmo, já que a francesa lhe exige tanto e você não se poupa nunca, não é? 
Você precisa vir. Marion precisa do que só você lhe pode oferecer. Aguardamos sua visita.
Um abraço, querida.

Sua sempre Isabelle.

(Por Ceronha Pontes)

Lettre d'Amour 2ª temporada (1)


Charlotte, é isso mesmo? Você emenda uma temporada na outra sem ao menos um telefonema?
Marion definha. Mas afinal, o que você tem a ver com isso, não é?

Catherine.

(Por Ceronha Pontes)


sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Salvação requentada


- Seu CPF, senhora.
- É... Ham... Valha! Sei não. Paraê... Aqui, procure aqui nesta identidade, moça, fazendo o favor.

(Seus dedos velozes açoitam o teclado.)

- É crédito ou débito?
- Crédito.
- Sua senha.
- Minha senha... E agora? Minha filha, quem souber morre.

Rimos. Eu, para não chorar. Olho bem o teclado da maquininha e meus dedos percorrem mecanicamente o desenho habitual. Transação aprovada. Ufa! No caminho de volta com as compras fico pensando se opto por drenagem linfática, ou uma terapia alternativa dessas da moda. Um tempo desses alguém quase me convenceu a tentar uma tal de Constelação Familiar. Voltar pro tai-chi...Hum, bom. Yoga? Talvez o Tad tenha razão e eu deva aderir ao microondas.

- Cé, você tem um microondas?
- Não (a casa é vegetariana e com mania de comida fresca).
- Pois neste ano novo você vai precisar.
- Vou?
- Sim. Porque se o problema é cozinhar, segunda-feira a senhora cozinha. Prepare o cardápio. Segunda vatapá,  terça berinjela, quarta brócolis, enfim, a senhora cozinha na segunda, congela, e o resto da semana vá cuidar da sua vida. Binha, a senhora não veio pro mundo a passeio. Vai viver doente, é? Tem coisa que só depois a gente sabe porque aconteceu. 2014 é seu ano, portanto, compre um microondas.

Ele me disse, não sem antes me lembrar que o que se passa eu já tinha previsto na calçada de uma igreja no Recife Antigo. Língua maldita. Intuição dos infernos. Rio de novo. E pelo motivo de outrora. Ah, os amigos! Será mesmo mais um eletrodoméstico no doce lar que reabilitaria mio cuore?
É... Pois é... "Tome conta do que vai dizer".

Ass.: Marion.

P.S.: Não bastasse a força das palavras, eu ainda adoro uma caixa alta.






Por pouco


Dormi com o Cachorro Louco. Nem bem abri os olhos e já na rádio cabeça ia pela metade Se Houver Céu. Leminski, seu bigodudo desgraçado, porque diabos me fazer chover? Tenha piedade.

Para ouvir.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

"Dormindo em pé, como um cavalo."



Um mundo de coisas não ditas ou derramadas em dolorosas entrelinhas, até que a porta da pick-up bate.

Ennis- Tem alguma idéia melhor?
Jack- Eu tive uma vez.
Ennis- Você teve uma vez? Já esteve no México, Jack Twist? Eu sei o que tem no México para garotos como você.
Jack- Já estive no México. Algum problema?
Ennis- Vou lhe dizer uma vez, Jack Twist, e não estou brincando. O que eu não sei, todas as coisas que eu não sei, eu podia matar você se ficasse sabendo. Não estou brincando.
Jack- Ouça esta. E eu só vou dizer uma vez.
Ennis- Pode falar.
Jack- É o seguinte: Podíamos ter tido um vida boa juntos. Muito boa. Ter a nossa própria casa, mas você não quis, Ennis. Então o que temos agora é a montanha de Brokeback! Tudo o que construímos está aqui. É tudo o que temos. Tudo! Espero que saiba disto, se nunca souber do resto. Conte as poucas vezes em que estivemos juntos em quase vinte anos, meça a coleira em que me mantém e então me pergunte sobre o México, e diga que vai me matar por precisar de algo que não tenho quase nunca. Você nem imagina como é horrível. Eu não sou você. Não posso me satisfazer com uma ou duas trepadas por ano. Você é demais pra mim, Ennis, seu filho da puta. Queria conseguir deixar você.
Ennis- E porque não deixa? Por que não me deixa em paz? Eu estou assim por sua causa. Não sou nada, não estou em lugar nenhum.
Jack- Está tudo bem.
Ennis- Me solta!
Jack- Vem cá. Está tudo bem. Droga, Ennis.
Ennis- Eu não agüento mais isso, Jack.

Para ver.
Para ouvir.