sábado, 22 de maio de 2010

NEGRINHA


Observa a "vã" filosofia que no mundo feliz ou desgraçadamente globalizado já não há tempo para a novidade. E nem antigo há de se tornar o que já brota e fenece tão imediatamente. Descartável.

Pois orgulhosa constato que sou velha. Considerando se tratar de uma conquista que pressupõe a plena experiência do novo. Digo-lhes esta tolice com a vaidade e o lamento também, de quem vive à revelia do tempo de mercado onde, como dizia o menino Cazuza, “sementes mal plantadas já nascem com cara de abortadas”. Começo por esta conclusão para explicar que já me livrei da frustração de não conseguir manter o blog girando na velocidade que o próprio veículo sugere. Ocupo-me do que me exige ou contempla com a eternidade para experimentar.

Desobrigada a postar tão logo tenha a ilusão de alcançar “a coisa”, antes rumino. E finalmente venho compartilhar os arrepios que me causou uma certa NEGRINHA.

Há bastidores que são realmente de se agradecer aos deuses. Conheci Sara Antunes num desses encontros de gente de teatro lá no meu Ceará. Ouvi-lhe falar de um seu espetáculo inspirado num conto do Monteiro Lobato. Menina pequena e pretinha abandonada numa Casa Grande, “casa de açúcar” onde ela amarga os horrores de um veneno cuja ação traiçoeira repercute ainda: A ESCRAVIDÃO. Interessei-me já. Idéia, desejo, coragem de olhar e nos fazer enxergar coisas do viver que muito se pretende largar ao esquecimento. Uma artista, pensei. Compromete-se para além da forma.

Consumou-se a admiração ao vê-la em Hysteria e Hygiene, espetáculos do Grupo XIX, de São Paulo, do qual a atriz fazia parte.

Fim de uma espera. Sara trouxe recentemente ao Recife o seu espetáculo, que ficou em cartaz numa sala do Centro Cultural Benfica, construção erguida há cerca de 350 anos. É da própria concepção desta obra encená-la em casarões antigos. Divididos entre Casa Grande e Senzala, entramos no espaço-tempo, descobrimos os restos de mobília, a ferrugem dos objetos, respiramos o pó, apuramos a vista na escuridão da História, para só então o assombro com o fantasma da sujinha, baratinha, coisinha, sapinha, a bisca, o trapo a cachorrinha, NEGRINHA.

É preta a atriz “branquiça”. Alguém duvida? É preta! E não me valho da tal fé cênica para afirmá-lo. É preta a Sara Antunes, no que ela tem de levar ao palco o que é de sua profunda e absoluta necessidade tratar. E neste momento são muito seus o discurso e as agruras da escravinha.

Nobres blogueiros, NEGRINHA é coisa-ruim, é de se desmamar recém-despejada no mundo, aquele traste. Que importa se tem fome, a peste? Se tem sede, se tem mãe, se tem boneca, se tem amor? Amor? Que sacrilégio! E isto lá é coisa que tenha um bicho preto de cor? Com muita sorte, aquele trapo mau preto pequeno, pinto-gorado, pata-choca, a coruja, o diabo, a NEGRINHA cresceu sob os santos cocres, abençoados beliscões e pontapés e safanões e outras louváveis judiarias de ordem educativa e purificadora, aplicadas por sua sinhá, a “Dona Áurea Cândida, que era uma mulher muito boa”. Horror!

E Sara, ora nos embevece, ora aterroriza com aquela coisinha que de um tudo sofreu na porcariazinha da sua vida ligeira. Com olhos de ver tudo colorido, mesmo sob a fraca luz de velas, NEGRINHA brinca com a platéia jogos de uma ingenuidade comovente. “Ô Esverdeado, que cor tem esse aqui?” E os amarelos e azuis e violetas, rosados, alaranjados, vermelhos, marrons, pretos e brancos também e os sem cor, os sem teto, os sem chão, os sem rumo, os sem eira nem beira, os sem porra nenhuma na bandida desta vida, todos ali, de coração na boca. Eita da vontade de recolher a pequena! Cuidá-la. Dá tempo mais não. “Perdeu, Esverdeado, ocê perdeu!”

A proposta veio do diretor Luiz Fernando Marques, que “trancou” Sara num casarão da Vila Maria Zélia em São Paulo, e a “abandonou” ali cercada de elementos que remetem à atmosfera do conto de Monteiro, alimentando a inspiração de uma atriz que bem escreve o próprio texto seu, perfeitamente cabível na boca de preta sapinha. Não está na grande frase de efeito a força do seu dizer. Toda a História se conta no não entender da pulguinha. E tenho lido avaliações riquíssimas sobre a famigerada Lei Áurea, mas nenhuma de me descontrolar no peito um coração tambor. Pois assim foi quando batia a NEGRINHA com a colher de pau na panela de ferro, transtornada, anunciando o 13, não sei que lá o 13, foi no 13, a Áurea do 13, os nêgo tudo explodindo de alegria e esperança. Vão-se fogueiras humanas a celebrar a tal da liberdade. NEGRINHA perdeu. Não queimou com eles, presa que ficou no abraço sufocante de Dona Áurea. Viu das janelas da “casa de açúcar”, ao longe, as fogueirinhas espalhadas, estrelas de negros. Ficou olhando até que se foram apagando uma a uma, “uns poucos aqui, uns gatos pingados ali”. Escravidão demora a largar.

Em nó se fez esta minha garganta. Arre égua da agonia com ingenuidade da coisinha! Pois acompanhava o movimento de mudança da “casa de açúcar” para a “casa de café”, vendo a “Dona Áurea Cândida, que era uma mulher muito boa”, a separar o de valor para levar consigo. O resto largaria no casarão assombrado. “Cama serve, castiçal serve, bandeja serve, os pratos... Ô Dona Áurea, e a NEGRINHA?” Pensemos em pavorosa resposta ainda não, adiemos o desfecho, pois que a negrinha alguma alegria conheceu, ainda que breve, brevíssima. Vejamos.

Como se fosse sonho (e preto sonha?), apareceu branquíssima sobrinha da sinhá sua dona, passar férias com a tia. Com ela, objeto que esbugalhou os olhos da sapinha, o alumbramento touxe-lhe o queixo ao peito. Nunca tinha visto boneca, a pobrezinha. Que coisa tão impossível de caber na imaginação da pretinha, cuja experiência se limitava a contar de um São Benedito das Neves. “É feita?” Perguntava extasiada. “É menina feita!” E não demorou a ter que tirar suas mãos pretas sujinhas da fina louça da sem vida. Diferente do conto, em que Lobato neste momento se compadece da Sinhá, fazendo-a experimentar uma quase bondade, Sara não lhe favorece com a redenção. Na peça, “Dona áurea Cândida, que era uma mulher muito boa”, não tardou a ensinar à escravinha que meninas feitas, tal qual as nascidas, também se dividem pela cor.

Agora danou-se! Depois de entender que há crianças de levar cocres e outras de ganhar carinhos, crianças de vestir trapos e outras cobertas de rendas, crianças comendo lavagem e outras lambendo docinhos, negrinhas para castigos, branquinhas para brinquedos, ah, NEGRINHA já não era a mesma! Seguindo com Monteiro e apelando de novo para a minha companheira nem sempre "inútil", a filosofia, recordo um Descartes conhecido de todos: “Penso, logo existo”. Foi o caso. Agora dava conta de si e do mundo em que vivia. Finalmente sabia-se infeliz a menina.

No conto, Lobato conta que definhou de tristeza a NEGRINHA: “Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza”. Na peça recebeu-nos morta já. Livre do frágil corpinho sujeito a torturas. Sobrou-lhe, no entanto, a vida longa do espírito cujas marcas ainda doem. Aberta continua uma ferida Brasil, desigual e perversa.

Talvez esperassem que fizesse uma avaliação mais técnica da coisa ou, menos confusa. Posso não. Nem me dei conta do método(por certo que há), que é como um caminho invisível. O percurso de Sara para estar tão NEGRINHA é livre de exibicionismos. Não posso mais do que estar emocionada(emoção tem a sua própria lógica) e atenta aos mecanismos de impedir a liberdade.

É justo ainda dizer que junto a Sara Antunes e Luiz Fernando Marques atua um diretor de arte, um artista Renato Bolleli Rebouças, que extrai do lixo a sua obra. E não como uma comprovação daquela idéia vendida em outros carnavais de que “pobre gosta de luxo, quem gosta de lixo é intelectual”, ora me poupem de comparação infeliz. O buraco é mais embaixo. Um teatro que se faça dos rejeitos de gentes, idéias e coisas, contrariando a sua morte tantas vezes anunciada, resiste exatamente naquilo que só ele é capaz de não deixar que morra. O resto é DESCARTÁVEL como propõe o mercado para o qual sigo de ouvidos moucos.

Salve NEGRINHA!

Evoé.

CERONHA PONTES

Recife-PE, 22 de maio de 2010.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

All you need is love


Casa abandonada este humilde blog. Fina camada de poeira cobrindo o não dito. Traças e aranhas o guardem com amor.
A pessoa tem até vontade de postar, contar as tantas coisas que andam rolando, botar reparo em outras, mas cadê o tempo??? Pensam que estou a reclamar? Não mesmo.
Ensaiando O Amor de Clotilde Por Um Certo Leandro Dantas, espetáculo inspirado nos melodramas circenses. Numa função que não é a de atriz, mas que tem me dado um prazer enorme. Havia um monstro dopado aqui dentro, dormindo forçadamente. Pois aconteceu dele acordar no picadeiro, dar duas piruetas e... Bravo! Bravo!
Eu tou que vibro. Doida de doidice frutífera.
Abraços aos que ainda não enjoaram de nos visitar.
Até breve

CERONHA PONTES
Recife-PE, 07 de Maio de 2010.